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Por Ronaldo Hallal1, Nêmora Barcellos2, Álvaro Ramos3
Estudo desenvolvido pelo Lowy Institute de Sydney avaliou o desempenho dos países no enfrentamento da covid-19, utilizando como critérios o número absoluto e as taxas de casos e mortes pela população, a cobertura de testagem na população e a proporção de testes positivos entre aqueles realizados. Com cerca de 10 milhões de casos notificados (sem considerar aqueles que não foram diagnosticados ou notificados) e aproximadamente 250 mil mortes, o Brasil tem a pior resposta no combate à pandemia entre 98 países avaliados.
Entre as consequências da falta de uma coordenação nacional na resposta à covid-19, destacam-se a cobertura insuficiente e uma estratégia inapropriada de testagem, acompanhadas, por conseguinte, de elevadas taxas de transmissão comunitária e baixos níveis de isolamento social. Tragicamente, a incapacidade do Ministério da Saúde, até mesmo na área de logística, culminou na perda do prazo de validade de quase 6 milhões de testes de PCR estocados e não utilizados.
Transmissão comunitária e circulação viral
A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera taxas de positividade do PCR inferiores a 10% como critério de controle eficiente da circulação viral para reduzir medidas de isolamento social, como o retorno de atividades escolares, entre outras atividades presenciais.
O Uruguai é o país com melhores indicadores de resposta à covid-19 na América do Sul. Reflexo disso é sua taxa de positividade no teste PCR inferior a 2% até novembro de 2020. Mesmo com a recente expansão da pandemia, o país ficou acima de 10% por apenas 3 semanas ao longo do mês de janeiro. O Chile mantém taxas inferiores a 10% desde agosto de 2020.
Os países europeus apresentam baixas taxas de positividade do PCR: O Reino Unido (inferior a 5%) e a Itália (média de 6,8% e em fevereiro abaixo de 5%) mantêm taxas “aceitáveis” de transmissão. A Espanha tem média de testagem de 7,6% (chegou a 15% em meados de janeiro, mas regressou a valores abaixo de 11% desde a segunda semana de fevereiro). Portugal tem positividade média de 7% e recentemente teve uma expansão da epidemia atingindo cerca de 15%, mas com a ampliação da testagem e medidas de isolamento retornou a patamares abaixo de 10%.
Já a Nova Zelândia decretou precocemente lockdown de três dias em Auckland, após a detecção de apenas três casos locais de covid-19. Em síntese, a experiência internacional mostra que, diante dos sinais de expansão da epidemia, a combinação de ampliação da testagem, intensificação da quarentena e redução das atividades sociais, eventualmente decretando lockdown, controla a propagação da doença e a sobrecarga do sistema de saúde, evitam o seu colapso.
Entre os países com maior número de casos confirmados, os EUA têm taxa média acumulada de 8,3% e a Índia mantém-se abaixo de 5% desde novembro de 2020, atingindo 1,9% em 2021. Considerando-se os 10 países que apresentam maior número de casos, apenas o Brasil não produz informações centralizadas a respeito da testagem, no entanto é estimado que a taxa nacional de positividade se situe entre 30% e 35% (https://ourworldindata.org/coronavirus-testing e https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries), refletindo elevada circulação viral.
No Rio Grande do Sul (RS), foram diagnosticados mais de 600 mil casos de covid-19 e ocorreram aproximadamente 12 mil mortes em quase 1 ano de pandemia. Foram realizados cerca de 2,5 milhões de testagens. O PCR foi adotado em apenas 46%, e testes rápidos, em 54% das situações. A taxa média de positividade do PCR é de 33,3% – o vírus foi detectado em uma a cada três pessoas que realizaram o teste. Desde o início da pandemia, durante apenas uma semana, em outubro de 2020, a positividade de PCR ficou abaixo de 20%. Desde o início de novembro de 2021, mantém-se acima de 30%, ficando em 46% durante 2 semanas. Em 2021, a positividade média dos testes PCR em nível estadual é de 36%, refletindo a manutenção por longo período de uma inaceitável elevada transmissão comunitária e a expansão da circulação viral ao longo do tempo.
Já em Porto Alegre, aproximadamente 80% da testagem empregam PCR, refletindo a maior disponibilidade e a concentração de laboratórios na capital. A positividade acumulada dos testes PCR é de 23%, atingiu 21% em janeiro e chegou a 33% em fevereiro deste ano, ainda que pacientes com poucos sintomas não sejam testados mesmo que busquem a rede de serviços, refletindo a expansão da epidemia na capital e provavelmente no estado.
Aceitar a elevada circulação viral foi uma escolha
A decisão do governo federal de se retirar da coordenação nacional do enfrentamento à pandemia transferiu para cada estado e mesmo cada município – mais expostos a pressões políticas e econômicas locais – a responsabilidade de tomar decisões sanitárias, muitas vezes desconsiderando evidências geradas pelo conhecimento científico e as boas práticas em saúde. Reflexo disso foi a motivação de vários municípios a distribuir medicamentos ineficazes tanto na prevenção quanto no tratamento da covid-19, o que levou à perda do foco programático, a efeitos adversos individuais, à falsa sensação de segurança na população e ao desperdício de recursos públicos.
O RS escolheu dar ênfase ao monitoramento da disponibilidade de leitos hospitalares como reflexo indireto da circulação viral, criando o Modelo do Distanciamento Controlado (MDC). Esse modelo utiliza dados da ocupação e da capacidade de atendimento no sistema de saúde e, por outro lado, relativiza o número de casos em relação aos leitos hospitalares.
A expansão da pandemia para os grupos populacionais que mais se movimentam e aglomeram, como os jovens, manteve a grande circulação viral sem acarretar impacto proporcional na ocupação hospitalar ou na mortalidade no período entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, deixando de sinalizar à sociedade a expansão da pandemia, que ficou mais evidente a partir de fevereiro deste ano.
Os danos emocionais, as manifestações clínicas de baixa gravidade e as sequelas psíquicas e biológicas (como fadiga ou anosmia), pouco considerados nas políticas de resposta à covid-19, acarretam impacto na qualidade de vida das pessoas, e não são refletidos no MDC vigente.
É possível também que, devido à característica de vírus de RNA, a grande circulação do SARS-CoV-2, com elevados níveis de replicação, contribua para a geração de variantes virais. Essas modificações nas propriedades virais, como a maior capacidade de ligação da proteína spike do vírus na célula humana, podem aumentar sua capacidade de transmissão e talvez a gravidade da doença.
Além disso, a grande exposição da população à transmissão poderá reduzir a eficácia da vacinação devido a mutações do alvo das vacinas atualmente disponíveis, conforme estudos que utilizaram a variante sul-africana, a qual possui mutações que se assemelham à variante identificada em Manaus, que já circula em diversos estados com casos autóctones.
Modelagens matemáticas também sugerem que a taxa de reprodução viral (Rt) influencia na cobertura vacinal necessária para gerar imunidade coletiva. Nesse sentido a redução da circulação viral reduz a proporção necessária de pessoas imunizadas para conter a epidemia.
Portanto, uma das consequências de modelos como o adotado pelo RS é a sua incapacidade de identificar a expansão da circulação viral, estabelecendo com isso o risco de contribuir para a menor efetividade da vacinação, embora ainda existam incertezas a respeito deste tema. A vacinação deve ser compreendida como parte da política de prevenção, que inclui o isolamento social. Este, por sua vez, reduz a circulação do vírus, protege do adoecimento, reduz a mortalidade e as consequências da carga de doença, além de otimizar o impacto da vacinação.
Em Porto Alegre a política não é baseada na ciência
O mais grave é que, neste cenário de incertezas, Porto Alegre e quase todos os municípios da região metropolitana decidiram desalinhar seus protocolos de prevenção da equivalência ao Modelo do Distanciamento Controlado. Isso significa que, na semana em que o mapa de estratificação de risco elaborado pelo governo estadual mostrar a Região Metropolitana de Porto Alegre com “bandeira vermelha”, os protocolos de prevenção adotados nesta região serão aqueles propostos para “bandeira laranja”. Significa também que nunca serão adotadas medidas mais restritivas referentes à “bandeira preta”.
Nesse sentido, a gestão municipal de Porto Alegre propõe o aumento da circulação da população em locais de comércio e no trabalho, utilizando transporte público, refeitórios e restaurantes, o que impulsionará a expansão da pandemia. O MDC adotado pelo estado já tem limitações e incertezas quanto à sua efetividade, mas tal desalinhamento aumenta a exposição da população – particularmente dos mais vulneráveis – à circulação viral e aos seus riscos, aprofundando os danos sanitários e sociais daí decorrentes.
Estudo realizado por organizações da sociedade civil no ano passado mostrou que, na visão de gestores, profissionais de saúde e usuários, a pandemia ocasionou a redução das equipes de saúde, do diagnóstico e do acesso ao tratamento da tuberculose e da Aids no Brasil. O mesmo se observa com outros agravos, como doenças cardiovasculares e neoplasias. Isso demonstra que os danos da covid-19 transcendem seus efeitos diretos, devendo a pandemia ser considerada como “Sindemia”, devido à sinergia com outras epidemias e à potencialização de seus efeitos de forma a aprofundar as desigualdades sociais.
O colapso do sistema de saúde
Nos últimos dias houve aumento das internações em enfermarias: em 7 de fevereiro eram 255 leitos ocupados, aumentando para 455 em apenas 10 dias, refletindo um crescimento de 78%. São 398 leitos de UTI com pacientes com covid-19 e taxas de ocupação superiores a 90%, atingindo 100% em alguns hospitais, os quais recentemente elaboraram documento informando ao poder público o esgotamento de sua capacidade de atendimento.
Um grande veículo de imprensa informa que 100 pacientes aguardam leito em Unidades de Terapia Intensiva da Capital e que as Unidades de Pronto Atendimento apresentam índices de ocupação chegando até 400% de sua capacidade de atendimento no dia 25 de fevereiro, algumas delas já impossibilitadas de atender à demanda.
Ainda assim, o governo do estado decidiu manter a cogestão junto aos municípios, notadamente mais vulneráveis a pressões locais, e manteve a decisão por aulas presenciais de Ensino Infantil e 1° e 2° ano do Ensino Fundamental em 100% de sua capacidade, sem a vacinação de professores. Ainda que bem-vinda, a restrição de circulação entre 20h e 5h será insuficiente para conter a expansão da epidemia, já que o monitoramento de aparelhos celulares mostra que atingimos os mais baixos níveis de isolamento social desde o início da epidemia – apenas 30% da população está em isolamento. Caso não tenhamos diminuição da circulação também diurna (pois é necessário atingir 70% de isolamento social), principalmente com a suspensão das atividades não essenciais – como, por exemplo, o comércio –, não haverá contenção da circulação viral.
Porto Alegre, por sua vez, não adere às recomendações estaduais mais básicas e opta por manter as atividades econômicas em funcionamento, potencializando a expansão da pandemia. O poder público deveria combinar estratégias de prevenção, tais como isolamento e elevada cobertura vacinal, para beneficiar a sociedade com a queda da circulação viral, permitindo que áreas prioritárias como a educação tenham funcionamento presencial somente após a melhoria dos indicadores sanitários. Entretanto, até este momento, tolerou-se a grande circulação viral e suas consequências, elegendo medidas de isolamento e lockdown como inimigos públicos, prolongando assim a crise econômica e sanitária.
No cenário atual de grande circulação viral que potencializa o colapso do sistema de saúde, será necessário adotar medidas mais rigorosas e cientificamente válidas para conter a expansão da pandemia em Porto Alegre. Nesse sentido, o lockdown durante um período de 2 semanas ou até a queda dos indicadores sanitários é a ação capaz de proporcionar impacto, a exemplo do que ocorreu nas experiências internacionais. Mas para isso será preciso que os governos promovam condições objetivas para a população, incluindo os recursos necessários.
Não é admissível que o estado do RS mantenha a estratégia que sustenta a ampla circulação viral, mesmo com a presença da variante P1 em nosso estado. Já Porto Alegre, mesmo diante do colapso do sistema de saúde, não pode abandonar medidas de proteção da população, aumentando as incertezas quanto ao nosso futuro. No presente, prevalecem os interesses políticos e econômicos, que se sobrepõem às evidências científicas e mesmo ao bom senso, muitas vezes devido a pressões ou a ambições eleitorais, acarretando a perda de um tempo que – assim como as vidas perdidas – é irrecuperável.
1. Médico Infectologista, Mestre em Ciências Médicas pela UFRGS
2. Médica Internista, Programa de Saúde Coletiva da UNISINOS
3. Matemático, Instituto de Matemática e Estatística da UFRGS
“Hallal et al”, por Ronaldo Hallal
Ronaldo Hallal é médico, infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.
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