Reprodução de Ofício do extinto DCCI sobre termos relacionados ao HIV/aids

Por Paulo Giacomini

Todos os anos é a mesma coisa. Querem apagar a luta do Dia Mundial de Luta contra a AIDS. Querem chamá-lo de Dia Mundial da AIDS (World AIDS Day), como nos países de língua anglo-saxã. No entanto, somos latinos.

Tive a oportunidade de dizer a quem quer suprimir a palavra luta – ou a luta mesma, simbólica, de quem empenha a vida por um sonho –, assim como as palavras puta e prostituta foram substituídas pelo frio e asséptico termo “profissional do sexo”. Líder do movimento de prostitutas no Brasil, Gabriela Leite era contra o termo. “Eu sou puta!”, dizia ela, que preferia à palavra prostituta.

É como “desigualdade social”. É um termo que sintetiza uma série de palavras vinculadas à pobreza, como miséria, fome, (falta de) água, esgoto, educação, saúde e moradia.

É, também, como sorofobia. Ou soropositivo. Sorofobia seria o medo, trauma, pavor, asco, ódio de quem é soropositivo. Mas soropositiva pode ser uma pessoa diagnosticada com qualquer doença no sangue. Desde uma sífilis a uma leucemia, o HIV ou uma hepatite B ou C, entre tantas outras.

“O desprezo, medo e aversão é contra a AIDS e contra as pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA), use assim, no lugar de soropositiva. Então, AIDSfobia dá verdadeiramente nome ao que causa a morte social muito antes de qualquer morte física”, diz a amiga @soroposidhiva, chamando a atenção para a luta que travamos todos os dias contra o estigma, o preconceito, a discriminação e a morte social.

Ano passado, em reunião remota com o agora extinto Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), que a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+ Brasil) solicitou ao Ministério da Saúde, foram debatidos dois termos: o termo Pessoa Vivendo com HIV (PVHIV) e o termo doença avançada por HIV.

A reunião já havia começado quando fui acionado pela secretaria de Articulação Política da RNP+ para participar da reunião. Foi no dia em que saiu a nota técnica sobre a lamivudina e eu caí na reunião, literalmente, de paraquedas.

A informação que tive é que o tema era “doença grave” e entrei na reunião, sem entender direito o que significava “doença grave” num dia em que a lamivudina era racionada depois de um ano (isso mesmo!) de liberada a “simplificação do tratamento” (retirada do tenofovir disoproxil fumarato), sem a autorização de uma câmara técnica que analisasse o caso.

Logo ao saber da pauta, questionei o que era doença avançada por HIV e por que o termo PVHIV voltava à discussão.

Acompanhe o raciocínio: instalado na célula T-CD4, cuja função é a proteção imunológica, o HIV começa se reproduzir. Quando a quantidade de vírus (carga viral) ultrapassa 200 cópias pro mililitro cúbico de sangue, o HIV também começa a ser transmitido.

Por outro lado, quando os linfócitos T-CD4 caem abaixo de 250 células por mililitro cúbico de sangue pode ocorrer um quadro de aids, que é quando os níveis de proteção imunológica ficam tão baixos que podem aparecer infecções até então protegidas pelos linfócitos já enfraquecidos.

Diagnóstico com resultados de CD-4 abaixo de 250 cel./mL3 de sangue é aids. Não existe doença avançada por HIV como a gripe é a doença provocada pelo vírus influenza, e como a covid-19 é a doença provocada pelo SARS-CoV-2.

“Doença grave por HIV” é aids, sigla para Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, em inglês, palavra historicamente instituída pela ciência. Ponto.

“A pessoa que desenvolve aids tem HIV”, dizem técnicos e demais defensores do apagamento da aids, como as que pedem nas redes sociais a retirada da luta do Dia Mundial contra a AIDS. “Sim, mas já não há mais leitos para pessoas com aids”, disse, na reunião com o agora extinto DCCI, o secretário Executivo da RNP+.

“Eu mesmo estou com febre há dias e saindo daqui vou ao médico. Se eu precisar ser internado, provavelmente não terá leito para mim”, relatou ele, resignadamente.

No final do Século XIX, a Sociedade Americana de Psiquiatria queria remover determinado distúrbio do Cadastro Internacional de Doenças (CID). Pacientes foram à porta da associação questionar quem seriam eles a partir daquele momento.

Desde que a epidemia de aids chegou ao Brasil, foram cerca de 350 mil óbitos pela doença. Homens, mulheres, travestis, transexuais, crianças, bebês, usuários e usuárias de drogas injetáveis, brancos, pretos, pardos, amarelos, indígenas, ricos, pobres, homo, bi, heteros... Cidadãos e cidadãs foram vítimas da aids. Não se pode apagar a luta que travaram, em algum momento, pelas suas vidas.

O extinto DCCI enviou ofício em resposta à RNP+ Brasil (que ilustra este artigo) informando que o termo Pessoa Vivendo com HIV/aids (PVHA) voltaria a ser grafado pelo Ministério da Saúde e que o termo “doença avançada por HIV/aids” passaria a ser “cuidado das pessoas com aids avançada”. Ainda fica a pergunta: o que é aids avançada? É estado terminal?

Influencers do HIV/aids favoráveis à eliminação asséptica da palavra “luta” justificam que a comunicação usa termos com metáforas bélicas para explicar ou traduzir os processos de saúde e doença.

Esta discussão é travada na academia. Ninguém gosta dos termos bélicos, nem o povo da saúde. No caso da reincidência de argumentos para a eliminação da palavra “luta”, a questão não é assepsia, nem a adoção por uma ou outra ideologia. Nem pela “comunicação não violenta”. É marketing! Só isso.

Final do ano voltamos com outros argumentos, pois obviamente, a “luta” estará vulnerável.

Mas, como diz o título deste, jamais conseguirão apagar a luta!

 

(Insights adicionais adicionados: Vanessa Campos / @soroposidhiva)

“Diário da Macaquita”, por Paulo Giacomini
Jornalista, começou criando o jornal da empresa em que trabalhava. Da faculdade foi direto pra Coluna Gay da Revista da Folha, da Folha de S.Paulo, onde colaborou com Poder, Esporte, Turismo e Ilustrada. Trabalhou na G Magazine, fez cobertura de carnaval pra Coluna do Gugu e ajudou a criar OFuxico. No movimento de aids, escreveu, editou, fotografou, produziu e deu forma a diversas publicações. Fez especialização e mestrado em Informação e Comunicação em Saúde no Icict/Fiocruz e foi Secretário de Informação e Comunicação da RNP+BRASIL. Vive com HIV/AIDS desde 1984. É diretor de Saúde Pulsando.


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