A covid-19 e a resposta à hepatite C e ao HIV/aids na população privada de liberdade

A autora durante a audiência pública na CSSF

Por Márcia Leão (*)

Em audiência pública sobre a epidemia de covid-19 e a resposta brasileira ao HIV/aids e à hepatite C na população privada de liberdade, nesta quinta-feira (23), na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados, a advogada Márcia Leão, coordenadora executiva do Fórum ONG AIDS RS e da Parceria Brasileira Contra a Tuberculose – Stop TB Brasil fez uma fala contundente, que sensibilizou a audiência pública.

Com a autora, Saúde Pulsando editou a fala transferindo-a ao formato de artigo, no qual ela afirma, entre outras, que uma “ação conjunta tanto da saúde como da justiça para que se consiga resguardar a vida da pessoa privada de liberdade”. Confira a seguir.

 

Eu não posso dizer que seja um prazer estarmos aqui hoje para discutir a resposta à hepatite C e ao HIV e aids em privados de liberdade, o melhor seria termos o fim desses agravos e mais nem uma pessoa afetada. Mas, enquanto não chegamos a isso, é muito bom podermos contar com uma Frente Parlamentar atuante e sempre atenta aos temas. Registro aqui meu agradecimento ao deputado Alexandre Padilha, que vem conduzindo a nossa Frente Parlamentar e fazendo desta um espaço efetivo de discussão e produção de políticas públicas. Sem dúvida, já se construiu muito, seja nas diversas audiências, seminários, sessões solenes ou nos encaminhamentos já propostos. Tenho certeza de que a Frente muito já contribuiu e contribui na resposta ao enfrentamento ao HIV, a aids e as hepatites, no Brasil.

Saúdo também os demais integrantes desta audiência, que está fortemente representada, com a presença de parlamentares, representantes do governo e sociedade civil. Desejo que tenhamos uma profícua manhã, conseguindo avançar nesta discussão tão importante.

Nesta mesa, em que temos a presença do Ministério da Saúde, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do CONASS e do CONASEMS, é bom dizer qual o meu lugar de fala. Eu sou advogada, e estou como coordenadora executiva do Fórum Ong aids RS, coletivo que reúne 53 ONG, redes e movimentos de luta contra a aids, IST, hepatites virais e tuberculose, no Estado, e também sou Coordenadora Executiva da Parceria Brasileira Contra a Tuberculose – Stop TB Brasil. Assim, meu olhar será nas políticas públicas, no direito das pessoas e de como podemos auxiliar nesse enfrentamento, enquanto sociedade. Dito isso, queria levantar alguns pontos, para nosso diálogo.

Quando eu recebi o convite para estar nesta mesa, fui procurar informações mais atualizadas sobre a hepatite C em privados de liberdade e para minha infelicidade não descobri muita coisa. Fui então procurar os dados referente ao HIV e aids, também relacionados às pessoas em cárcere; consegui um pouco mais de informação, mas ainda assim, muito pouco se sabe sobre a saúde de quem está confinado. O HIV e a aids, assim como a hepatite C são graves problemas de saúde pública e chama a atenção a negligência com esse cuidado, em quem é de responsabilidade do Estado, refletida na falta de dados.

As pessoas privadas de liberdade, representam somente uma parcela da nossa sociedade, mas uma parcela que traz muitas vulnerabilidades que podem aumentar as chances de infecção pelo HIV ou hepatite C, e nem tão pequena assim, uma vez que o Brasil é o terceiro país em número de pessoas encarceradas. Temos um encarceramento em massa. E me traz esperança quando o representante do CONASEMS também pontua isso em sua fala. Com números que ultrapassam os 700 mil detentos (entre apenadas e apenados e pessoas aguardando julgamento), em um País que dispõe de pouco mais de 400 mil vagas no sistema prisional, podemos imaginar as condições existente nas casas prisionais. Precisamos salientar que a saúde das pessoas em privação de liberdade somente tem um olhar mais afinado, já no século XXI. A Constituição de 1988, apesar de garantir a saúde para todas as pessoas, não conseguiu levar seu braço até o cárcere. Lá, as violações ainda estão presentes, mas não podemos permitir que elas sejam perpetuadas. As iniquidades sociais, os preconceitos e estigmas devem ser rompidos. Quando a Constituição diz que a saúde é um direito de todas as pessoas e um dever do Estado ela não separa se isso é de responsabilidade de um ou outro ministério, que a estrutura organizativa apregoe. Então, a responsabilidade é de todos os entes públicos, aliás ponto muito bem levantado pelo Dr. Nereu, representante do CONASS.  

Essa dificuldade em encontrar dados, cruzar informações, reforçada pelo Dr. Gerson Pereira em sua fala, atinge diretamente a possibilidade de construirmos uma resposta efetiva ao enfrentamento da HCV e do HIV e aids, para citar os agravos que são mote dessa audiência, mas sabemos que isso se estende aos demais. Sabemos que a atuação da sociedade civil e da academia foram fundamentais para o bom desempenho da política de aids, em idos tempos. No entanto, a ausência de dados mais robustos dificulta que ações específicas possam ser envidadas em prol da população privada de liberdade.  

A representante do FOAESP já nos trouxe alguns exemplos do fato de não conseguimos monitorar se o detento que ao ingressar no sistema prisional já tenha diagnóstico e estava em tratamento de HIV ou aids e tem acesso imediato e ininterrupto a sua TARV. Como acompanhar o detento, que dentro da evolução de sua pena, troca de casa prisional, ainda na vigência de um tratamento de HCV? Ao pensarmos em ações que incentivem a busca do diagnóstico, oportuno, como dizemos, como garantir que aqueles que testarem positivo, para qualquer agravo, tenham acesso a consulta médica e ao tratamento em um tempo hábil, e não após seis meses ou mais?

Com a emergência da Covid-19 no primeiro trimestre de 2020, esforços extraordinários estão sendo exigidos das áreas da saúde, assistência social, trabalho, universidades e organizações comunitárias para garantir a prevenção e oferecer tratamento às pessoas atingidas pela Covid-19.

A situação com a pandemia tem se mostrado tão caótica e tão gritante que, enquanto movimento social, estamos tendo diversas dificuldades para conseguir monitorar e acompanhar de forma mais detalhada os usuários junto aos diversos serviços e a execução das políticas públicas.

Diariamente temos gente morrendo, morrendo com covid, morrendo com HCV, morrendo com aids, morrendo com tuberculose. Mas, também, é diariamente que cidadãs e cidadãos estão sendo desassistidos nos seus direitos mais básicos, a começar pelo constitucional direito de acesso a saúde. Direito esse que não se apaga com a privação de liberdade, ou pelo menos não deveria se apagar.  

Para o Estado (e aqui falo nos três âmbitos de gestão), as dificuldades advindas com a epidemia de Covid-19 não podem ser uma desculpa para falhas e apatia. O Estado não pode deixar de dar atenção integral à população, seja ela liberta ou privada da liberdade. O SUS não pode falhar e nem se ausentar da execução das políticas públicas de saúde. O SUS tem que honrar seus princípios. Não teremos uma saúde pública de qualidade se o governo descumprir os princípios da equidade, da universalidade e da integralidade. As pessoas precisam ser vistas com todas as suas nuances e complexidades e atendidas em suas mais diversas necessidades, independente de estarem em casa, na rua ou no cárcere.

A pesquisadora Alexandra Sanches (2020), falando sobre a epidemia de Covid, nos aponta uma importante reflexão, ao dizer que “Assegurar a saúde e a vida da pessoa privada de liberdade é responsabilidade do Estado, uma vez que ela se encontra sob cautela estatal e, por isso, não pode se defender e buscar por conta própria acesso a atendimento em saúde. É fundamental reunir esforços tanto para organizar as equipes de saúde internas, para identificar rapidamente casos suspeitos e monitorá-los de acordo com as normativas, quanto para encaminhar os casos mais complexos para unidades de saúde”.

Essa responsabilidade do Estado, não se dá somente na epidemia de Covid, mas, sim, para qualquer agravo, e isso aponta para a necessidade de que os sistemas que geram dados, as ações e principalmente o comprometimento se dê entre os dois ministérios que hoje estão aqui.

Precisamos de uma ação conjunta tanto da saúde como da justiça para que se consiga resguardar a vida da pessoa privada de liberdade. Então é muito bom ouvir a fala do DEPEN, que espero nos acolha como parceiros, a exemplo de como já trabalhamos com o Ministério da Saúde. Mas, essa responsabilidade também é desta casa. Também compete ao parlamento monitorar e propor estratégias para que essa interlocução aconteça de forma mais efetiva.

Em uma busca aqui do legislativo, não encontrei proposições que abordem essa dificuldade no acesso, monitoramento e ações específicas com privados de liberdade no contexto do HIV/aids e das hepatites virais. Também não encontrei nem uma legislação específica que vise a dar conta dessas dificuldades. Dificuldades estas que comprometem a adesão ao tratamento e, para isso, precisamos de políticas públicas que deem suporte a pacientes e suas famílias.

Precisamos de maiores investimentos em pesquisa e inovação tecnológica, mas precisamos, acima de tudo, de políticas públicas que contemplem essa múltipla resposta que precisa ser construída para dar conta dessas epidemias que não podem mais ser vistas apenas pelo olhar biomédico.

Precisamos que a gestão apoie ações do movimento social que dê conta de acompanhar as políticas públicas e auxiliar na sensibilização e acompanhamento dos pacientes. Isso precisa ser feito tanto nacionalmente como nos estados e municípios.  

E essa casa pode auxiliar na construção desse enfrentamento ao HIV/aids e às hepatites virais, criando políticas integradas, que reúnam saúde, assistência social e justiça e segurança, fortalecendo o diálogo e incitando uma agenda comum. Urge que estas estratégias intersetoriais sejam postas, as pautas precisam ser conjuntas e efetivas.

Precisamos de legislações, mas precisamos, mais ainda, de vontade política para levar dignidade e garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade.

Encerro com as palavras de Gabriel Serra Brito (2020) que em recente artigo sobre a Covid-19 em população privada de liberdade disse: “Manter essas pessoas dentro de presídios superlotados, sem condições de higiene, saneamento básico e acesso à saúde, é assinar sua sentença de morte, indo em contramão à Constituição Federal, que não dá ao Estado o poder de decidir quem vive e quem morre. A lei só tem o direito de dispor quanto a liberdade do preso, não sendo a vida um dos bens aos quais a pena poderá atingir.”

E reforço o que ele escreveu dizendo que precisamos nos unir todos, gestão, academia, parlamento e sociedade civil para juntos construirmos uma resposta efetiva ao enfrentamento ao HIV/aids e às hepatites virais, a tuberculose, a hanseníase e a outros agravos, bem como levando condições melhores de acesso a saúde às pessoas encarceradas.

Márcia Leão é advogada e secretária executiva do Fórum ONG AIDS RS e da Parceria Brasileira Contra a Tuberculose – Stop TB Brasil.

 

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