Atentado à memória das vítimas da AIDS

Atentado à memória das vítimas da AIDS

Atentado à memória das vítimas da AIDS


Estupefata é uma palavra que adjetiva, dá qualidade, caracteriza o substantivo. É quando uma pessoa fica imobilizada. Na medicina, uma pessoa fica estupefata – ou imobilizada – pela ação de algum medicamento. Por extensão, no sentido figurado, diz-se de uma pessoa abismada, perplexa, imobilizada diante de algo que não se espera.

Estupefatos ficaram ativistas do movimento de luta contra a aids poucas semanas atrás com a notícia da chantagem de um “influenciador digital” do mundo do HIV/aids nas mídias sociais.

Não é a primeira vez que o movimento brasileiro de luta contra a aids se estupefata com golpes de pessoas vivendo com HIV ou com aids. Ou de pessoas que dizem viver com HIV, mas, na verdade, vivem de explorar pessoas colocando o HIV como empecilho para alguma coisa.

Quem já não viu pessoas nos ônibus, no metrô ou mesmo nas ruas empunhando uma receita médica e pedindo dinheiro para comprar medicamentos para o tratamento do HIV?

Nos anos 1990 ficou famosa a história de uma mulher que se dizia soropositiva para o HIV, foi presidente de uma ONG/aids em Goiás e nunca teve HIV na vida.

No interior de São Paulo, no início dos anos 2000, a presidente de uma ONG/aids denunciou um ativista que se dizia soropositivo para o HIV. Seus testes tinham resultados “inconclusivos”. Jamais se provou se era verdade ou não, mas o fato é que nunca ninguém ouviu o sujeito dizer que tinha tido uma diarreia como efeito colateral de algum medicamento para tratamento do HIV. Nunca.

Houve, também, outra história, a de uma ativista que recebeu mais de dez mil reais para cobrir as despesas de hospedagem e alimentação em uma viagem a uma conferência internacional de aids. Nunca mais se soube se ela devolveu ou não o dinheiro. Dinheiro público, saliente-se.

No caso recente, um tik-toker, cujo perfil tem mais de 400 mil seguidores e vídeos com mais de 600 mil visualizações, fez um vídeo com uma piada sem sentido sobre HIV. O “influenciador digital” do HIV/aids viu o vídeo e pediu mil reais para não denunciá-lo, pois o vídeo incluía a questão da sexualidade e, se condenado, o tik-toker seria por crime de homofobia, equiparado ao crime de racismo.

Na chantagem printada, revelada em um outro vídeo pelo tik-toker, o “influenciador digital” do HIV/aids envolve o médico Drauzio Varella em sua narrativa de extorsão, além de afirmar que várias pessoas do movimento social haviam reclamado com ele sobre o vídeo-piada. Três outras pessoas que vivem com HIV propuseram ao tik-toker fazer uma live como “medida reparadora”.

Bem, se já foi resolvida a questão do vídeo-piada, qual o problema? O problema é que o “influenciador digital” do HIV/aids recebe financiamento da indústria farmacêutica para “influenciar” pessoas com HIV a tomarem vacina, a aderirem ao medicamento...

Mas, quem avalia os resultados de influência digital dessas pessoas que se dizem representantes das pessoas vivendo com HIV, doentes de aids e do movimento social de luta contra a aids?

Para Saúde Pulsando, estas histórias surgem de pessoas cujo oportunismo não mede consequências, cuja palavra ética jamais foi compreendida porque nunca estudada. Uma resposta pode ser o tratamento ambulatorial, pois, na maioria dos municípios, a atenção no tratamento de pessoas vivendo com HIV é maior do que a dispensada a outros agravos à saúde.

Outra resposta pode estar no fato de que a maioria das ONG/aids brasileiras não aceitam financiamento da indústria farmacêutica. No entanto, essa indústria tem que investir parte de seus lucros na comunidade que se beneficia de seus medicamentos. Se as ONG/aids não aceitam o financiamento da indústria farmacêutica, esta mesma indústria procura outros beneficiários para suas ações comunitárias.

Pessoas que se depararam com o HIV e resolveram – até por desabafo – compartilhar suas histórias de repente tornaram-se influenciadoras digitais. E a indústria farmacêutica tem investido nestas pessoas físicas, muitas sem o menor envolvimento com a agenda de luta e reivindicações do movimento social.

Este recurso precisa de um monitoramento, de um controle social interno, que avalie a penetração daquele/a influenciador/a digital, bem como sua conduta, sua postura pública, sua ética e seus valores. Caso contrário, essas histórias tendem a ser mais e mais comuns. Se não enfrentadas, continuarão apenas a ser o que são: atentados à memória das vítimas da aids.

 

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