Por Jacqueline Rocha Côrtes

Desnecessário dizer que a COVID-19 assola e maltrata milhões de pessoas neste mundo e que o HIV continua fazendo suas vítimas e sendo negligenciado e banalizado, também maltratando pessoas com a sua marca maior, o estigma e a discriminação. E travestis e mulheres transexuais são experts no conhecimento sobre estigma e discriminação; vamos ainda além: são protagonistas dessa árdua e injusta vivência, desse lugar de alvo do ódio e crueldade alheia.

A pandemia do coronoravírus escancara a transfobia, o descaso do poder público e a desigualdade social e econômica. Um dos fatores mais gritantes que tem refletido na vida das pessoas durante essa pandemia é a falta de alimentos, a fome. Sem trabalho formal ou informal, sem apoio sustentável do governo, sem alternativas, sequer para comercializarem seus corpos, a população de travestis e trans, novamente, é uma das que mais sente e vive a dor desses reflexos nefastos que promovem uma situação pandêmica e de calamidade. Dói na barriga, dói no coração, dói na mente, dói na alma. A dor da fome, do abandono, da invisibilidade, da falta de solidariedade. A dor dói, e dói, e dói...

Contudo, a história tem mostrado que é na dor que, muitas vezes, emerge o amor. E mais uma vez, o amor se mostra com toda sua força e coragem, toda sua fé e boa vontade por meio da solidariedade entre pares. Sim, pares! Travestis e mulheres transexuais ajudando outras pessoas TT e a si próprias. Atuando imediatamente para que todas as dores que permeiam as diversas vidas de pessoas TT e LGBQI+ possam ser aliviadas num momento como o que estamos passando, o da pandemia de COVID-19. Não foi diferente nos anos 80 e 90, com a então pandemia do HIV, que igualmente se configurou por meio da solidariedade entre pares. Casas-abrigo improvisadas para acolherem travestis e trans que viviam nas ruas, ou em situações de extrema pobreza e vulnerabilidade. Lembramos aqui o magnífico e pioneiro trabalho de Brenda Lee (in memoriam), uma travesti que não se rendeu à AIDS e decidiu juntar forças e lutar por suas semelhantes, seus pares, ou suas pares. E ai vê-se a história “plagiando” a própria história, e a comunidade TT fazendo a história acontecer de maneira mais leve e, como não podia deixar de ser, até com alegria e bom humor, porque quando juntas por uma causa nobre e única, comum a todas, a vontade de viver e de superar prevalece perante todas as dores. A isso, eu chamo de fé!

Estamos vendo mobilizações de vários lados, lideradas por mulheres trans e travestis que sabem também envolver pessoas cis de boa fé, sim, porque a segregação não parte da população LGBTQI+, ao contrário, vivemos tentando dizer e mostrar ao mundo que podemos conviver em paz e com respeito na sociedade, somos capazes de vivermos com dignidade e construindo um país melhor, basta que os olhares externos e interiores deixem suas fantasias fundamentalistas e grotescas de lado e possam olhar para toda a gente como gente. De maneira emblemática, eu cito aqui um exemplo de luta e de gente que faz, ou ainda, de travestigênere que faz: Indianara Siqueira, travesti, prostituta, idealizadora e preside a CASA NEM, instituição no Rio que abriga mais de 50 pessoas TT, algumas LGBQI e seus animaizinhos de estimação, sim, cachorrinhos, gatinhos e passarinhos que acompanham a vida solitária de muitas das meninas trans. A CASA NEM luta há mais de 5 anos para manter um teto para essas pessoas, já foi despejada diversas vezes, e ocupavam outro imóvel abandonado e sem qualquer manutenção. Lá faziam uma restauração, limpavam, cuidavam, Transformavam, e, mais uma vez, eram todas despejadas. Finalmente, em recente decisão do governo do Rio de Janeiro, a CASA NEM ganhou sua sede própria e lá permanecerá com seu povo que luta, o que ensina e ajuda a aliviar todas as dores aqui descritas. Sim, porque para quem não sabe, dentre tantas outras iniciativas de pessoas trans e de instituições trans, a Casa Nem iniciou uma ação solidária e cidadã já no mês de março, fazendo um “pedágio” em frente o prédio que viviam à época para coletar doações de qualquer insumo de higiene pessoal e limpeza, alimentação, dinheiro, o que fosse para poder dar comida a quem passava fome. A população prioritária era e são as TTs, mas isso não impediu que as próprias TTs promovessem ajuda para quem batesse à porta daquela Casa.

Este artigo quer mostrar que não estamos vitimizando a população trans, não; ao contrário, estamos mostrando o quanto o amor brota nos corações das pessoas feridas e humilhadas, que carregam tanta dor e que podiam então refletir essa dor em ódio; mas, ao contrário, para nossa esperança, as travestis e as mulheres trans refletem suas dores com a solidariedade, porque sabem o que é uma barriga doendo, uma doença sem remédio, um corpo sem cuidados, e até mesmo uma unha sem esmalte e uma boca sem batom. A solidariedade coletiva aqui descrita e o amor advindos de centenas, milhares de corações de pessoas humanas, não invalidam outros corações também cruéis e que, tristemente, encontram-se perdidos em suas próprias dores mascaradas de raiva e rancor. Sim, a população trans não é “santa”, e nem de santas e santos estamos falando. Há pessoas LGBTQI+ que são más, equivocadas, como qualquer outra pessoa cis. Aqui, o que quero, é salientar a luta coletiva, a solidariedade, a determinação em fazer acontecer, porque sabemos que “seguro morreu de velho” como diz o dito popular. Isto quer dizer que, se formos esperar os governos matar a “nossa” fome, vão contradizer o dito popular e morrer de “novas”, como tem sido a realidade da população trans neste país.

Então, pergunto, pelo amor ou pela dor? Pelos dois!

“TransitHIVa no Ar”, por Jacqueline Rocha Côrtes
Jacqueline Rocha Côrtes é uma mulher de 60 anos, idosa (risos), professora aposentada, casada, mãe, esposa, irmã, filha, amiga, companheira, colega, ativista, alegre, triste, fraca, forte, brincalhona, séria, destemida, disponível e solícita, impaciente, suave e firme, decidida, compreensiva, e brava. Bem-sucedida em meus sonhos e desejos, sofrida, pisada, humilhada, agredida, respeitada, acalentada, desejada, querida, acarinhada e amada. Muito amada. Agradecida e grata. Sou uma mulher, e dentre estas características minhas, também sou uma transexual redesignada e vivo com HIV e AIDS há 26 anos! E tenho um filme documentário, longa-metragem, que conta a história da minha vida. ‘MEU NOME É JACQUE’. Tá, meu bem?


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