Draurio Barreira: “a tuberculose já está sendo mais negligenciada do que de costume”

O sanistarista e epidemiologista Draurio Barreira

Em alguma cidadezinha da França, muito perto de Genebra, onde trabalha, o médico sanitarista e epidemiologista Draurio Barreira dedicou algumas horas de seu distanciamento social junto à família para responder por escrito a cada uma das oito perguntas que Saúde Pulsando enviou para esta entrevista. Elaborada com a valiosa colaboração da Parceria Brasileira Contra a Tuberculose – Stop TB Brasil, e da Rede Paulista de Controle Social da Tuberculose, a entrevista é sobre tuberculose em tempos de Covid-19. Segundo o médico, a pandemia dá ao Brasil a oportunidade de “implantar um programa de triagem de assintomáticos e testagem dos sintomáticos, como nunca se fez antes na história”. Assessor sênior para Tuberculose do Departamento de Estratégia da Unitaid, desde 2015, Draurio foi coordenador do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), do Ministério da Saúde, de 2008 a 2015. A seguir, leia a entrevista concedida, sem cortes.

por Paulo Giacomini

Saúde Pulsando: Diante do atual cenário de pandemia da Covid-19, quais seriam as estratégias mais eficazes para manter as políticas pelo fim da tuberculose nos países mais afetados atualmente pela pandemia (Índia, Irã, Rússia, Brasil e EUA), com acesso a diagnóstico e tratamento à tuberculose?

Draurio Barreira: Vejo a questão do diagnóstico como o principal desafio à eliminação da tuberculose. Uma doença transmitida pelo ar, que dos 10 milhões de casos novos por ano, tem 30% dos casos – três milhões de pessoas – não diagnosticados e que continuam a transmitir o bacilo. Isso é uma tragédia sanitária! Vamos aproveitar para comparar com o covid-19, outra doença também transmitida pelo ar e que já matou, nesses cinco primeiros meses de 2020, quase 400.000 pessoas. A tuberculose mata todos os anos, mais de um 1.500.000 de pessoas. Não dá para negligenciar! Penso que deveríamos aproveitar a pandemia para se pensar na tuberculose e para se implantar um programa de triagem de assintomáticos e testagem dos sintomáticos, como nunca se fez antes na história. Com a vantagem que pode-se fazer isso como parte dos esforços para se controlar o covid-19.

SP: Com relação às pesquisas em andamento e a novas pesquisas de tratamento da tuberculose de menor duração e, portanto, com maior adesão, em sua opinião serão mantidas ou existe alguma ameaça de interrupção ou redução de investimento por conta da pandemia?

DB: Tenho lido muitos artigos e conversado com várias pessoas que demonstram que já está havendo muito menos investimento em pesquisa e desenvolvimento de novos diagnósticos, tratamentos e vacinas para tuberculose. Obviamente a prioridade nesse momento é o covid-19, mas tudo vai depender de como evolua a pandemia. Se, como afirmam alguns, o covid-19 tornar-se endêmico, vai haver um direcionamento dos investimentos para seu diagnóstico e, principalmente, para sua prevenção (vacinas) e tratamento. Se a pandemia desaparecer, seja por efeito da imunidade de rebanho ou de outros fatores ainda não previsíveis, esse comprometimento pode ser temporário. É dificil predizer o futuro neste momento, mas no presente a tuberculose já está sendo mais negligenciada do que de costume…

 

“... o enfrentamento aos determinantes sociais é mais necessário do que nunca.”

 

SP: Tentando visualizar um futuro nada promissor e levando em consideração a crise financeira que vai atingir a todos os países, em especial os países mais pobres, quais seriam as estratégias para manter as metas do plano global pelo fim da TB?

DB: A tuberculose sempre foi determinada socialmente, uma doença da pobreza, da exclusão social. Embora possa acometer a qualquer pessoa independentemente de classe social ou situação econômica, obviamente acomete mais severamente as populações socialmente vulneráveis. Isso certamente deverá piorar no curto prazo, nos próximos meses, talvez anos. Nesse sentido, o enfrentamento aos determinantes sociais é mais necessário do que nunca. A pandemia trouxe à discussão a necessidade de um novo pacto social, do papel do Estado como promotor do bem-estar social. A pandemia expôs a falácia do neoliberalismo. Todo o setor produtivo correu para o Estado em busca de apoio para não quebrar. Se o setor produtivo, o empresariado, precisa do apoio do Estado, imagine os despossuídos de tudo. A questão de uma renda básica universal voltou, com força, à agenda política. A luta contra a tuberculose é uma luta pela equidade, a luta contra a pobreza, contra a miséria. Isso deve ser o princípio norteador de todos aqueles que lutam contra a tuberculose. 

SP: Embora o Brasil não seja um país com alta carga de TB resistente, mas com uma série histórica de aumento da pobreza e agora com perspectiva de aumento acelerado para os próximos anos por conta da pandemia. Qual seria sua análise?

DB: A baixa prevalência da TB resistente no Brasil, em comparação com outros países, é a demonstração da eficiência do SUS e da necessidade de que a Saúde seja entendida como direito de todos e dever do Estado. A oferta de vacina (BCG), diagnóstico e tratamento da tuberculose no SUS, tem evitado o crescimento de formas resistentes da TB no Brasil. Não sou particularmente pessimista em relação ao crescimento da resistência se o SUS for preservado. Caso não seja, será o caos.

SP: Como estão as notificações de casos de pacientes de TB e Covid? Você tem acesso a estes dados no âmbito do Brasil e no âmbito mundial?

DB: Não tenho como lhe responder essa pergunta. A notificação da tuberculose é consolidada globalmente uma vez por ano, em outubro, não temos esse acompanhamento cotidiano. Isso é feito pelos países. O Ministério da Saúde poderia responder à sua pergunta.

SP: Outro ponto importante é a dispensação do tratamento, para os países como o Brasil, que a medicação é retirada mensalmente. Então, nesse contexto, como você vê a possibilidade da retirada de medicação por um período maior, evitando expor o paciente ao ambiente da unidade de saúde? E como, em épocas de distanciamento social, a OMS está recomendando o TDO, sem o acompanhamento direto ao paciente?

DB: Não se espera que a situação de isolamento social vá perdurar por muitos meses. Os serviços precisam se adaptar às novas necessidades de proteção pessoal, tanto dos profissionais de saúde, quanto da população usuária. Para os locais que efetivamente fazem o tratamento supervisionado que, convenhamos, são poucos, há necessidade de uma mudança de hábitos. Uma alternativa que tem paulatinamente substituído as visitas domiciliares, ou a ida do paciente à unidade de saúde, é o VOT, sigla em inglês para video-observed treatment, ou seja, o mesmo tratamento supervisionado só que sem a presença física do profissional de saúde, com a supervisão sendo feita por meio dos smartphones. Em tempos de coronavírus temos nos adaptado cada vez mais a ajuda da tecnologia para resolver os problemas cotidianos.

SP: Pensando nas populações mais afetadas pela TB, como as populações em situação de rua e as populações privadas de liberdade, o que já se tem sobre Covid e tuberculose?

DB: Esse é um desafio ainda maior em tempos de covid. Falei anteriormente que a tuberculose é uma doença da pobreza, da exclusão social, não há exemplo mais dramático da exclusão social do que um ser humano viver em situação de rua ou privado de liberdade. Tanto a TB quanto o covid têm um potencial devastador para essas populações. A abordagem, nesses casos, é muito menos biomédica, e muito mais social. Sem uma atenção que considere essas populações de forma holística, teremos uma catástrofe. Sendo sincero, ao observar como o país tem enfrentado a necessidade do isolamento social da população geral, não há como não ser pessimista em relação a essas populações.

 

O cuidado ao paciente é absolutamente necessário, mais do que isso, é um dever do Estado, mas será sempre como enxugar gelo, se os determinantes sociais não forem enfrentados.”

 

SP: Qual sua análise da questão TB / Covid / Proteção Social especificamente no caso do Brasil? A ausência de políticas específicas de proteção social e a falha nas poucas ações nesse sentido, como por exemplo o auxílio emergencial de R$ 600,00, que as pessoas que realmente mais precisam nem sequer tiveram acesso à inscrição por smartphone ou computador?

DB: Não vou entrar na especificidade das questões de política de saúde. Minha posição está clara em relação à necessidade de uma abordagem que extrapole os cuidados meramente sanitários. Nos oito anos em que fui coordenador do PNCT priorizamos o enfrentamento dos determinantes sociais. Não mudei absolutamente nada nessa compreensão desde então, pelo contrário, hoje tenho mais claro do que nunca que o enfrentamento da tuberculose se dá no enfrentamento dos determinantes sociais. O cuidado ao paciente é absolutamente necessário, mais do que isso, é um dever do Estado, mas será sempre como enxugar gelo, se os determinantes sociais não forem enfrentados.

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