O Retorno do Grupo de Risco

Por Jorge A. Beloqui*

O “Grupo de Risco” e o HIV/AIDS
Quando emergiu a pandemia do HIV/AIDS eu pertencia ao “grupo de risco”. Por ser gay. Houve inicialmente a era dos 4 “h”: homossexuais, haitianos, hemofílicos e “heroinômanos” (usuários de heroína, ou melhor, em nossos países da América do Sul, usuários de drogas injetáveis!).

O que aconteceu? A primeira definição de grupo de risco, relacionada à AIDS, resultou em uma tempestade de discriminação contra homens gays no início e por muito tempo. Assim como Trump agora (e BolsoNero), na época Reagan negou a AIDS, não se importou: afinal era um problema de gays. Mas vale ressaltar: o risco dos “grupos de risco” referia-se à aquisição da infecção pelo HIV, e não à doença!

Passamos do grupo de risco para o comportamento e situação de risco. Categorias eminentemente individuais. Para finalmente levar à vulnerabilidade! Categoria social e, portanto, leva mais em conta determinantes sociais.

Mas os estragos estavam feitos! Porém, em 1 de dezembro de 1990 o presidente Collor, com o prestígio do primeiro presidente eleito diretamente depois da ditadura, disse oficialmente que “todos estamos em risco”! E a frase teve importância na época.

A nomenclatura “grupo de risco” teve outra consequência, além de promover a discriminação: aqueles que não estavam no “grupo de risco” pensavam que não estavam em risco e, portanto, sua vida sexual continuava como de costume. Por exemplo os e as heterossexuais; até houve médicos que disseram que os homens heterossexuais não pegavam o HIV! O estrago do “grupo de risco” na AIDS persiste: Eu me lembro de ter acolhido homens heterossexuais recentemente diagnosticados que tinham medo de ser discriminados por ter HIV e, portanto, serem homossexuais! E daí seriam mais discriminados ainda.

Porque se os homossexuais masculinos apresentavam maior probabilidade de adquirir o HIV, isto não significava que os heterossexuais tivessem probabilidade zero!

A discriminação na época também chegou aos profissionais de saúde que lidam com o HIV/AIDS. Por tratar de pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA), eles também eram “grupo de risco”.

O “Grupo de Risco” e o Coronavírus
E agora, sendo homossexual, vários anos após, me vejo em outro grupo de risco novamente. Com efeito, nesta pandemia de Covid-19 os “grupos de risco” são os que temos mais de 60 anos, ou alguma comorbidade (DPOC, hipertensão, diabetes, asma etc.).

Porém, este (ou estes) não são um grupo de risco para a infecção, mas correm maior risco de morrer se adquirirem a infecção.

Se por um lado, a mortalidade parece preferir algumas pessoas mais velhas ou com comorbidades (e a lista de comorbidades aumenta), a infecção não parece ter uma faixa etária ou comorbidades favoritas, por enquanto.

Eles são simplesmente chamados de “grupo de risco”. Fulano está no “grupo de risco”, é uma expressão amplamente usada! E isso muitas vezes traz nas entrelinhas a afirmação “e eu não” ou “e eu nem tanto” e, portanto, não tenho problemas ou estou livre de restrições. Como com os heterossexuais e o HIV!

E, novamente, para o resto da população, passa a ideia de que os outros (jovens, ou menores de 60 anos, ou sem hipertensão, sem diabetes etc.) não estão em risco. Mas para o que mesmo não estão em risco?

  • Para adquirir a infecção,
  • Para transmitir a infecção
  • para adoecer se pegarem ou
  •  para morrer se ficarem doentes?

Isso nunca fica claro – exceto entre aqueles que sabem exatamente do que estão falando – e confunde mesmo!
A vulgarização da expressão é um obstáculo à sua eliminação ou substituição por algo mais exato.

Um exemplo:

O outro dia eu estava no jardim da minha casa, distante da calçada e passou um cara pela rua, sem máscara. Ele disse: “O senhor tem que se cuidar. Volte para sua casa!”. Ou seja, a responsabilidade era inteiramente minha pois eu era do “grupo de risco”. Nem no meu jardim poderia sair! Ele não era do “grupo de risco” e, portanto, estava isento de qualquer precaução e responsabilidade. Nem ocorreu-lhe que ele poderia pegar e transmitir o coronavírus para alguém! E muito menos adoecer.

A expressão tem consequências claras: muitos jovens (<50 anos!) sem tomar medidas de cuidado, sejam máscaras, distância nas filas, evitando multidões etc., mesmo nas filas, até havendo espaço, muitos ficam mais próximos do que o recomendado. Ao mesmo tempo, semana passada, o diretor do Hospital Emilio Ribas declarou que mais da metade das internações eram para pessoas com menos de 50 anos. E que pode haver sequelas, sejam pulmonares ou renais.

Enquanto isso, a discriminação contra os funcionários da saúde ou pelos enterros avança bastante. A sociedade varia de honrar profissionais a discriminar profissionais que moram perto deles!

Para aqueles com mais de 60 anos, a discriminação e o “cuidado” pesam, o que às vezes vem com um pouco de autoritarismo, “para o seu bem”!

Algumas pessoas parecem querer seguir sua vida diária sem mudança alguma, porque teriam alguma proteção: seja sua religião (como alguns pastores evangélicos, ou rabino ortodoxo e ministro da saúde de Israel, alguns falecidos depois por causa do Covid-19), seja seu “passado de atleta” como divulgou BolsoNero. Também desmentido pelos óbitos. Não há muita preocupação com o fato de serem possíveis veículos de transmissão. O chamado “isolamento vertical”, justamente, é a concretização da ideia de que fora do “grupo de risco” não devemos nos preocupar em mudar, nem sequer como possíveis transmissores!

Houve alguns estados e cidades com o sistema de saúde em colapso pelo crescimento explosivo de casos, em parte devido ao incentivo do BolsoNero ao desrespeito ao isolamento social. Começou como uma “gripezinha”, “alguns morrerão? é da vida” ou o famoso “e daí?”. Não se importou com as famílias e seres queridos que os mortos deixaram para trás. Nenhuma menção a eles na visita de BolsoNero, Guedes e empresários (todos no “grupo de risco”!) ao Toffoli. Só falaram de “morte de CNPJ”; as dos CPF não contavam.

Ainda com a adaptação do sistema de saúde, se é que era possível adequá-lo às necessidades, alguns profissionais de saúde (como na Itália) viram-se tendo que decidir para quem iria certo recurso de saúde (como respirador, por exemplo), e para quem não iria, o que levaria o não contemplado a morrer.

Nesse caminho, a Amib (Associação Brasileira de Medicina Intensiva) e a Abramede (Associação Brasileira de Medicina de Emergência) lançaram o “Protocolo de alocação de recursos em esgotamento durante uma pandemia por Covid-19”.

Na primeira versão (abril 2020) um critério era a idade. Neste caso, como ficam os idosos, o “grupo de risco” em geral? Há o “grupo de risco” dentro do “grupo de risco”? Na atual “o princípio mais sólido é o de priorização de pacientes com melhores chances de benefício e com maiores expectativas de sobrevida”. No dia 10 de maio, durante o Jornal Nacional da Globo, um médico do Hospital das Clínicas de São Paulo fez um depoimento falando daqueles que não acreditam na doença, acreditam que ela não os alcançará ou que será leve.

Foi muito emocionante. Porque também fala sobre o “estresse” que eles sofrem e que não os façam chegar à situação de ter que escolher quem vai usar o respirador – e quem não! Essa situação depende de nós todos.

Voltando ao HIV: Pensei na quantidade de casos que conheço de discriminação sobre pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA). Eu acho que muitas pessoas discriminam porque querem viver como se o HIV não existisse em suas vidas. Portanto, elas não precisam tomar precauções. E podem ter relacionamentos sexuais sem preocupação. É por isso que, quando alguém com HIV aparece por perto, eles o expulsam do seu mundo, porque no mundo deles não há HIV! E eles continuam assim, vivendo. Alguns pegam o HIV e depois não podem mais negar. E é difícil!

Eu acho que há algo semelhante com o Covid-19. Não vou me preocupar com mais isto na minha vida, eu vou continuar como dantes, eu tenho que trabalhar, que saco esse governo irritante que tira minhas liberdades! Mas o cara não sai só para o trabalho: também está indo e tomando cerveja na porta de um bar, conversando ou saindo com outras pessoas. Às vezes não mantém a distância dos outros, esquece da máscara etc. Importa-se vagamente que possa pegar o vírus (“eu não sou do grupo de risco”) e, portanto, adoecer e passá-lo para os outros (aqueles do grupo de risco devem tomar cuidado, não saiam de casa, mas eu...). Pouco importam os esforços e riscos que os profissionais de saúde devem assumir (talvez para cuidar daquele que não se cuidou), nem os que trabalham em funerais, nem a polícia nas ruas, etc.

Então concluo achando que essa denominação, mais uma vez, tem significado deturpado e que precisa de uma urgente revisão!

Talvez seja necessária uma declaração das autoridades governamentais e científicas do seguinte tipo: todos estamos em risco de pegar o Covid-19, todos estamos em risco de transmiti-lo!

 

* Jorge A. Beloqui é professor no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME/USP), membro do GIV – Grupo de Incentivo à Vida, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA e da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS – RNP+.

Compartilhe nas redes sociais: