Mariângela Simão: “Não acredito numa conspiração para tirar a AIDS do esforço global”

Foto: UNAIDS Brasil

Enquanto no Brasil o presidente da República nega a virulência em crescimento exponencial da Covid-19, à frente do combate ao SARS-CoV-2 na Organização Mundial da Saúde (OMS) está a pediatra brasileira Mariângela Batista Galvão Simão. Desde 2017 ela é diretora geral assistente para o acesso a medicamentos e outros produtos farmacêuticos do organismo da Organização das Nações Unidas, a ONU.

Mariângela estava no então Programa brasileiro de combate à AIDS quando o presidente Lula decretou o licenciamento compulsório do efavirenz, à época, medicamento prescrito a cerca de 40% das pessoas com HIV em tratamento. Nesta entrevista, além de falar de licenciamento compulsório, ela refuta veementemente a teoria da conspiração pela invisibilidade da AIDS. Para Mariângela, o foco deve ser no esforço da manutenção dos programas de prevenção do HIV e nas pessoas com HIV.

Confira a entrevista concedida nesta segunda-feira (20/04) a Saúde Pulsando, em meio aos espaços de sua atribulada agenda.

 

Por Paulo Giacomini

 

Saúde Pulsando – Em 2007, quando o Brasil decretou o licenciamento compulsório do efavirenz, a senhora estava na diretoria do então Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde. Aquele momento foi importante para o Brasil porque possibilitou que o País garantisse a sustentabilidade do Programa de Aids distribuindo o medicamento às pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA) em tratamento.

A exemplo de países como Israel, Alemanha, Canadá, Chile, Equador e Colômbia, a Câmara dos Deputados deve votar nesta semana o PL 1462/2020, do deputado Alexandre Padilha (PT-SP), que “altera o Art. 71 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, para tratar de licença compulsória nos casos de emergência nacional decorrentes de declaração de emergência de saúde pública de importância nacional ou de importância internacional”. Como a senhora vê a possibilidade de novamente o Brasil decretar o licenciamento compulsório de insumos para a recuperação da saúde da população?

Mariângela Batista Galvão SimãoHá várias questões e os países têm autonomia para tomar decisões e essa é uma delas: os países têm autonomia para tomar decisões relacionadas à propriedade intelectual seguindo o acordado em TRIPS e as flexibilidade nele contidas sobre saúde pública e propriedade intelectual. Se é conveniente ou não para o Brasil fazer, vai ser uma questão para o Brasil decidir.

Até o momento, apenas uma das drogas no estudo Solidariedade, que é um estudo grande que a OMS está fazendo no momento, que é o remdesivir, do laboratório Gilead, apenas este produto é protegido por patente no Brasil, os demais, não. O laboratório anunciou que fará um amplo licenciamento voluntário para produção em vários países. Acredito que a decisão do Brasil vai depender, primeiro, se for comprovado que esta droga é eficaz contra o coronavírus e também o preço que ela será ofertada ao país.

 

SP – Na semana passada, um relatório da Faculdade de Medicina da Universidade de Chicago atestou provisoriamente a capacidade do remdesivir curar a Covid-19. A simples divulgação do documento alavancou as ações da farmacêutica que detém a patente deste medicamento. A senhora acredita que os países em desenvolvimento seriam capazes de adquirir o medicamento frente à crise econômica sem precedentes que a SARS-CoV-2 está provocando?

MBGSA resposta está parcialmente contida na anterior, mas vai depender muito dos planos que o laboratório vai ter para tornar esse produto, se for realmente eficaz, deve-se lembrar que não é um produto como outros, porque é injetável, de modo que é para aplicação hospitalar, em pacientes mais graves, se provar que ele é eficaz, vai ter que se negociar um preço que seja acessível e sustentável para os diferentes países.

 

SP – Ainda nesta semana, a TV brasileira exibiu imagens de corpos ao lado de pacientes com Covid-19 em Manaus; ontem, um contêiner frigorífico foi posto no estacionamento do hospital para guardar os corpos. Também nesta semana foi divulgado um ofício do Chefe da Seção de Serviço Militar do Rio de Janeiro Exército que solicita às chefias de postos de recrutamento e mobilização dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo “levantamento de dados estatísticos referentes a quantidade de cemitérios, disponibilidade de sepulturas e capacidade de sepultamentos diários” para consolidar e responder à “Pandemia COVID-19”. Como a OMS está enxergando a pandemia no Brasil?

MBGSUma resposta mais simples é que o Brasil está com transmissão comunitária confirmada e com número crescente de casos. Então, não chegou ao ponto de se poder dizer que está na curva descendente. O que temos visto, de acordo com os dados fornecidos pelo governo brasileiro, é um aumento crescente no número de casos com uma letalidade ainda proporcionalmente alta em relação a outros países.

 

SP – Na semana passada, a China reviu suas contas e elevou o número de mortos pela Covid-19, o que foi aplaudido pela OMS, segundo alguns veículos de comunicação brasileiros. No “Em Pauta”, da Globonews, o sociólogo Demétrio Magnoli disse que a OMS acredita na China, mas que o número de mortos deveria ser multiplicado por dez, 20. A OMS está mesmo otimista em relação aos números fornecidos pela China?

MBGSA OMS é um repositório de informações recebidas dos países. É claro que algumas informações são recebidas com o tempo e elas demoram mais para chegar à fonte central à medida em que elas são coletas localmente. A base de dados epidemiológicos com a qual a OMS trabalha é baseada nas informações fornecidas pelos países, como a China, como o Brasil. O que se observa em situações em que há menos disponibilidade em número de testes vai-se ter o que se chama de uma potencial subnotificação, já que muitos dos casos que são mais leves não são testados e, portanto, não são confirmados. A magnitude da transmissão na comunidade vai poder ser avaliada apenas em situação mais adiantada na epidemia por meio de outros tipos de testes que não o PCR que se está usando atualmente pra confirmar o número de casos. Os estudos sorológicos – acredito que o Brasil tenha alguns em andamento – vão fornecer mais dados sobre a proporção da população que tem anticorpos contra o vírus, ou seja, que foi afetada pelo vírus e pode não ter manifestado uma doença mais grave e acabou não sendo computado nos registros oficiais. Mas isso está sendo feito ainda pós fato. Por exemplo, a Itália começou os estudos populacionais agora, a Alemanha está fazendo e a Coréia também.

 

SP – No início do atual governo federal, o Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde incorporou outros agravos e retirou a palavra aids de sua nomenclatura. Algum tempo antes, a OMS e o UNAIDS também a retiraram de seu vocabulário. O movimento social brasileiro de luta contra a AIDS afirma que essa invisibilidade da aids é prejudicial à contenção da pandemia. As pessoas têm HIV mas morrem de AIDS, ou de comorbidades a ela relacionadas. O HIV não tem cura. A AIDS já tem cura? Qual é a estratégia por trás da invisibilidade da AIDS?

MBGSEu acho que tem um contexto maior do que o descrito. Eu não acredito numa teoria da conspiração para tirar a aids do esforço global. Muito pelo contrário. O fato é que com o acesso ao diagnóstico precoce e o tratamento fornecido imediatamente após o diagnóstico, a expectativa é que as pessoas não desenvolvam a síndrome, não desenvolvam a aids. O problema consiste em que se tenha foco no HIV e nas pessoas, não se se chama aids ou não se chama mais aids. O esforço enorme, hoje, é para que as pessoas que sejam HIV-positivas não desenvolvam os sintomas da síndrome de imunodeficiência adquirida. Não é uma estratégia para se tornar invisível o HIV, mesmo porque com os milhões de pessoas vivendo com HIV no mundo é impossível tornar isso invisível. E também porque continua sendo necessário, na medida em que não há uma cura, continuam sendo necessários esforços enormes para manter as ações de prevenção e para garantir que as pessoas que são HIV-positivas tenham acesso não só ao diagnóstico precoce, mas também ao tratamento adequado que vai proporcionar que elas continuem tendo uma vida produtiva, combatendo o estigma e a discriminação que estão associados, muitas vezes, a outros fatores. Então, eu não acredito nessa tese da invisibilidade.

 

SP – Que diferenças a senhora pode apontar entre a pandemia da AIDS e o advento da pandemia do novo coronavírus, o SARS-CoV-2, que provoca a Covid-19?

MBGSAcho que a grande diferença entre esta pandemia e a do HIV – e foi muito bem traduzida pelo Anthony Fauci numa entrevista recentemente – é que a pandemia do HIV, que afeta até hoje muito mais pessoas – morreram 32 milhões de pessoas – mas se desenvolveu ao longo dos anos, enquanto que na pandemia do novo coronavírus nós estamos vendo um desenvolvimento rápido de um vírus de transmissão respiratória. Ambas são pandemias. Eu vi um pouco da discussão no Brasil sobre se o HIV era ou não pandemia. Foi declarada a pandemia de HIV. Mas, isso aconteceu antes da existência do regulamento sanitário internacional, onde foi estabelecido que o comitê de experts internacional declara uma emergência de interesse da saúde pública, que define as pandemias. O caso do HIV precede este regulamento. Mesmo assim, o HIV foi e continua sendo uma pandemia que existe na maioria dos países do mundo.

 

Nota da Redação: Anthony Fauci é assessor especial da Casa Branca para o SARS-CoV-2. Principal pesquisador dos EUA sobre o novo coronavírus, Fauci foi diretor do Diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos desde 1984 (NIAID, na sigla em inglês) quando foi convidado para aconselhar o presidente norte-americano no combate à Covid-19.

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