Covid-19: algumas reflexões

A antropóloga Jane Galvão

Por Jane Galvão*

Em 4 de maio deste ano, o compositor Aldir Blanc morreu em razão de complicações causadas pela COVID-19. Sua mais famosa composição, “O bêbado e a equilibrista”, criada em parceria com João Bosco, fala de um Brasil saindo da ditadura militar (1964-1985) e entrando no período da anistia. Naquele momento, exilados políticos puderam retornar ao país, entre eles Herbert de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfil. Betinho, inclusive, é citado numa passagem da música: “[…] meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil”.

Betinho e Henfil morreram de complicações decorrentes da AIDS, nas décadas de 1990 e 1980, respectivamente. Décadas depois, novo vírus toma a vida de Aldir Blanc, reunindo simbolicamente os três, como imaginou o cartunista Nando Motta:Aldir, equilibrando-se numa corda, tal qual sua famosa música, chega ao céu e é saudado por Betinho, que chama Henfil para ver quem chegou.

Aprendemos muito com o HIV, e Betinho foi um dos mais destacados personagens no Brasil que possibilitaram isso. Voltar os olhos para os anos iniciais da epidemia de HIV para agir contra a COVID-19 pode ser eficaz.

Neste pequeno texto sobre a COVID-19, realço a aprendizagem obtida por meio do enfrentamento de outras epidemias, como a do HIV, e examino temas como a importância da solidariedade e a vigilância necessária para evitar ou agravar situações que restrinjam direitos.

Uma pandemia além da imaginação

Identificada nos últimos meses de 2019, uma doença causada por novo coronavírus pegou o mundo de surpresa. Inicialmente, não foi alarmante. No entanto, em pouco tempo, a COVID-19, como passou a ser chamada, tornou-se grande problema de saúde global. Mais que isso, parecia materialização aterrorizante de ficções cinematográficas, como Outbreak (Epidemia, 1995) e Contagion (Contágio, 2011). Pouco tempo depois, em 11 de março de 2020, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, qualificou a nova doença como pandemia. Naquela data, contabilizavam-se 118 mil casos notificados e 4.291 mortos. Algumas semanas mais tarde (1º de maio), havia mais de 3 milhões de casos confirmados de COVID-19 e mais de 200 mil mortes dela decorrentes1.

Sem vacina e/ou medicamento para prevenir ou tratar a COVID-19, diversos países implantaram medidas preconizadas pela OMS “para detectar, interromper e conter a transmissão de pessoa para pessoa”. Entre elas, a mais conhecida é o distanciamento social, e o isolamento adotado em muitos países levou a diferentes níveis de confinamento. Apesar do reconhecimento do sucesso de tais medidas, análises apontam que novas infecções continuarão ocorrendo.  

Manutenção e defesa dos direitos individuais e coletivos durante uma pandemia

Listam-se inúmeras ações de apoio voltadas para pessoas afetadas pela pandemia,mas é importante estar atento à falta de proteção dos direitos individuais e coletivos, que já se observa. Multiplicam-se atos de xenofobia, entre eles líderes de governo que chamam o novo coronavírus de “vírus chinês”.

Especialmente no que diz respeito às mulheres, o cenário é preocupante, como destacam agências das Nações Unidas (ONU) e organizações da sociedade civil: observam-se aumento da violência doméstica, exacerbada pelo confinamento, e restrição dos direitos sexuais e reprodutivos.Várias agências chamam atenção para populações marginalizadas que podem ser particularmente vulneráveis, ??como lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais (LGBTI) e, também, pessoas vivendo com HIVprofissionais do sexopessoas que usam drogas e pessoas que estão em prisão.O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos destaca que pessoas com deficiência podem ser desproporcionalmente impactadas pela COVID-19.

Há também possibilidade, de acordo com agências da ONU, de que medidas de saúde pública atualmente adotadas para frear a transmissão do vírus possam ser usadas para restringir direitos humanos. Para o diretor-geral da ONU, António Guterres, a COVID-19 representa ameaça à estabilidade global. Segundo avaliação de Guterres, o Conselho de Segurança da ONU deveria adota ruma resolução,e isso, até o momento, ainda não ocorreu. Guterres alerta: “[…] a pandemia também constitui ameaça significativa para manutenção da paz e segurança internacionais – potencialmente levando a um aumento da agitação social e da violência que prejudicaria enormemente nossa capacidade de combater a doença.”

O que se pode aprender com outras doenças que impactaram a saúde pública

Epidemias e surtos como Ebola deixaram lições– como a importância do envolvimento comunitário, sobretudo nas ações locais – que podem ser úteis para enfrentar a COVID-19.

Inúmeras análises têm destacado como o conhecimento adquirido com a epidemia de HIV pode ser aplicado à pandemia de COVID-19, por meio de diferentes ângulos, como por exemplo, testagem. A epidemia de HIV ensinou, por exemplo, que vírus não conhece nem respeita fronteiras. No entanto, também se aprendeu com o HIV, falta de liderança política, desinformação, insuficientes recursos financeiros e humanos, estigma e discriminação acometem populações de diferentes maneiras, eventualmente imprimindo ao vírus trajetórias diversas nos países afetados. Com a COVID-19, veem-se desigualdades, como nos Estados Unidos, que apresenta desproporcional número de casos entre afro-americanos e latinos.

Assim como ocorreu na epidemia de HIV, houve a fase de negação da letalidade do novo coronavírus. Agora, quando é impossível negar seu impacto devastador, presenciamos a falsa dicotomia que põe saúde pública e economia em lados opostos. Essa discussão também se ampliou nos primórdios da epidemia de HIV: uma publicação do Banco Mundial de 1997 exemplifica esse dilema. Mas, aos poucos, essa dicotomia foi desqualificada, pois não percebia benefícios e ganhos econômicos obtidos quando pessoas com HIV têm acesso a tratamento.

Relatório publicado em maio de 2020 apresentou resultados de surveys conduzidos em 11 países (Alemanha, Arábia Saudita, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Japão, México e Reino Unido). Uma das perguntas indagava se era mais importante salvar vidas ou salvar empregos e reiniciar a economia. Quase 70% responderam que o governo deve salvar o maior número de vidas,ainda que, por conta disso, a economia sofra danos e se recupere mais lentamente.

Duas outras liçõesda epidemia de HIVsão relevantes para a COVID-19: importância do envolvimento da comunidade como parte das respostas locais, regionais e global; e exercício da solidariedade.

Uma das mais meritórias lições da crise infligida pelo HIV é, seguramente, a importância da mobilização da sociedade civil, sobretudo das pessoas vivendo com HIV, na construção das respostas à epidemia. Nesta crise atual, a participação da sociedade civil tem sido apontada como algo que pode beneficiar a maneira como a COVID-19 é enfrentada em diferentes países. Um exemplo é a África do Sul. Profundamente afetado pelo HIV, o país implementou programa de trabalhadores comunitários para enfrentar a epidemia e, agora, essa experiência é usada para enfrentar a COVID-19.

Solidariedade foi palavra-chave na resposta à epidemia de HIV promovida por organizações da sociedade civil. No momento, é um conceito que está sendo usado por várias organizações, incluindo agências da ONU, e oferece diversas perspectivas para enfrentamento da COVID-19, como, por exemplo, apoio necessário para profissionais de saúde e outros trabalhadores considerados essenciais.Outro exemplo de solidariedade é o apoio recebido pela OMS após o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciar, em abril, suspensão da contribuição dos Estados Unidos para aquela agência. Esse mesmo tipo de solidariedade está presente na resolução Cooperação internacional para garantir o acesso global a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos para enfrentar COVID-19, adotada em 20 de abril de 2020, na 74ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Alguns dias mais tarde, em 24 de abril, deram-se passos concretos nessa direção com o lançamento de plataforma inovadora de colaboração, materializada no Compromisso e apelo à ação: colaboração global para acelerar as novas tecnologias de saúde para COVID-19. O evento virtual para o lançamento contou, como coorganizadores, com a OMS, o presidente da França, a presidenta da Comissão Europeiae a Fundação Bill & Melinda Gates. Alguns dias mais tarde, em 4 de maio, evento virtual para captação de recursos– moderado pela presidenta da União Europeia e com participação de representantes de 40 países, fundações, ONU, experts, entre outros – conseguiu captar 7,4 bilhões de euros. É importante destacar que,até o momento, vários países ainda não contribuíram para a iniciativa, incluindo China, Estados Unidos e Brasil.  

Apoio para profissionais de saúde e trabalhadores essenciais e importância de se manter a esperança

Para finalizar, destaco dois pontos: profissionais de saúde e trabalhadores considerados essenciais, e a importância de se manter a esperança.

Quando se designou 2020 para ser o ano da enfermeira e da parteira, não se imaginava que profissionais de saúde enfrentariam doença tão letal como a COVID-19. Já se registra alta taxa de infecção e morte entre esses profissionais, assim como entre outros trabalhadores engajados em atividades consideradas essenciais2. Tais profissionais, que em muitos casos não têm acesso aos equipamentos necessários para proteção pessoal, merecidamente estão sendo ovacionados em várias partes do mundo, mas espera-se que essa admiração durante a pandemia se traduza em ações concretas de suporte para tais profissionais3.

Quanto à esperança, não é algo fácil de se manter durante uma pandemia tão mortal como a de COVID-19, e o exemplo que apresento vem do Brasil. Na década passada, depois de muita luta por parte da sociedade civil,o país ficou conhecido por medidas inovadoras no enfrentamento da epidemia de HIV, sobretudo no que diz respeito à participação comunitária e à distribuição de medicamentos para pessoas vivendo com HIV. Nos últimos anos, no entanto, o país sofreu retrocesso. Infelizmente, com relação à COVID-19,o Brasil tem apresentado mensagens contraditórias no enfrentamento da pandemia. O país e o presidente Jair Bolsonaro têm sido criticados por políticas praticadas que têm efeito negativo no enfrentamento da pandemia. Considerando o presente cenário brasileiro, as previsões não são boas para a evolução da pandemia no país4.

Mas, como dizem, “brasileiro, profissão esperança”5, destaco Betinho, mencionado no início deste texto. Sociólogo e ativista, teve participação ativa em várias áreas,como AIDS – ele foi fundador e presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS/ABIA –, reforma agrária e fome. Com relação à AIDS, Betinho encabeçou várias campanhas, entre as quais por acesso a informação e medicamentos. Em janeiro de 1992, o Jornal do Brasil publicou o texto O dia da cura, em que Betinho relata como seria o dia do anúncio da cura da AIDS. Imaginou ele:

Foi numa manhã comum, como qualquer outra, que abri o jornal e li a manchete: Descoberta a Cura da AIDS! A principio fiquei deslocado na cama como se a terra tivesse saído do lugar e meu quarto estivesse mais a esquerda que de costume. Fiquei parado um tempo sem saber qual deveria ser o primeiro ato de uma pessoa de novo condenada a viver. Primeiro certificar-se. Telefonei para o meu médico. Realmente e o próprio Bush estava dando declarações na TV americana assumindo a veracidade do fato: 10 pacientes em estado avançado da doença haviam tomado o CD2 e não apresentavam nenhum sinal ou sintoma da presença do vírus em seu organismo. Um eficiente viricida fora descoberto. As outras notícias seguiam o mesmo curso. O laboratório do CD2 teve uma alta espetacular na Bolsa de Nova Iorque. Na França, o Instituto Pasteur dizia que outra coincidência acompanhava os caprichos da ciência. Ali também o CD2 estava no forno para ser anunciado.Telefonei para meu analista, dei a notícia sobre a cura da AIDS e decidi que só iria enfrentar a felicidade nas próximas sessões. Afinal, eu havia me preparado tanto para a morte que a vida agora era um problema.

[…] De repente me dei conta de que tudo havia mudado porque havia a ideia e o anúncio da cura. Que a ideia da morte inevitável paralisa. Que a ideia da vida mobiliza… mesmo que a morte seja inevitável, como todos sabemos. Acordar sabendo que se pode viver faz tudo ter sentido de vida e mudar o modo como se vive a vida. Acordar pensando que se vai morrer faz tudo perder o sentido. A ideia da morte, no lugar da vida, é a própria morte instalada. De repente me dei conta de que a cura da Aids sempre havia existido, como possibilidade, antes mesmo de existir como anúncio do fato acontecido, e que seu nome era vida.Foi de repente, como tudo acontece.

Hemofílico e infectado pelo HIV via transfusão de sangue, Betinho morreu em 1997 de complicações relacionadas à AIDS. A cura não surgiu até hoje, mas medicamentos mais eficazes para controle do HIV ficaram disponíveis– o que esperamos ocorrer em breve com a COVID-19, como indica o esforço global realizado nessa direção.Enquanto o momento não chega, temos de ter esperança de que a cura para a COVID-19 (e quem sabe para a AIDS) um dia surgirá.

Apoética descrição de Betinho para o dia da cura da AIDS sinaliza a necessidade de que, mesmo em circunstâncias adversas e devastadoras – como a epidemia de HIV foi nas décadas de 1980 e 1990 ou como a pandemia em que vivemos agora –devemos manter a esperança, lutar e acreditar. Como canta Rita Lee, “dias melhores virão!”.

Jane Galvão, antropóloga, doutora em Saúde Coletiva, foi coordenadora geral da ABIA (1993-1999). Atualmente, é Assessora Sênior para Saúde e faz parte da equipe da UNHR, em Genebra, Suíça.

Artigo publicado originalmente no site da ABIA

 Notas

  1. Como reconhecimento da gravidade da pandemia, a 73a Assembleia Mundial da Saúde (AMS)– que deveria ocorrer ocorrer de 17 a 21 de maio–, pela primeira vez na históriaserá virtual, em formato reduzido (18-19 de maio), e terá, basicamente, somente um ponto na agenda: o novo coronavírus.A AMS é o órgão de tomada de decisão da OMS e ocorre uma vez por ano, em Genebra, geralmente em maio. A Assembleia inclui delegações dos 194 estados membros da OMS, mas também agências da ONU, organizações da sociedade civil, especialistas em saúde pública, acadêmicos, fundações, doadores e o setor privado.
  1. A definição do que é considerado essencial não é uniforme e pode variar de país para país, como, por exemplo, no Brasil.
  1. No domingo de Páscoa (12/4/2020), a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, teve projeção de jaleco branco, em homenagem aos profissionais de saúde que estão enfrentando a COVID-19.
  1. Um exemplo é a posição contrária do presidente Jair Bolsonaro a medidas de prevenção preconizadas pela OMS e implementadas por governadores em vários estados no Brasil. Tais medidas tinham o apoio do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro em 16 de abril de 2020, “após semanas de conflitos sobre a estratégia para enfrentar a pandemia do novo coronavírus no Brasil”. Vale ressaltar que, em fevereiro de 2020, Bolsonaro declarou que uma “pessoa com HIV é despesa para todos no Brasil”. O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e a ABIA, instituições fundadas por Betinho, elaboraram carta ficcional em que Betinho responde ao presidente Jair Bolsonaro a respeito de sua fala polêmica (“pessoa com HIV é uma despesa para todos no Brasil”): “morri em agosto de 1997, mas me sinto obrigado a responder a uma declaração pública que coloca sobre nós, doentes, o fardo de sermos um custo para o país”.
  1. “Brasileiro, profissão esperança”, peça teatral escrita pelo dramaturgo brasileiro, Paulo Pontes, na década de 1960, em plena ditadura militar.

Compartilhe nas redes sociais: