Montagem sobre foto de Flavio Dutra
Por Carla Almeida[1]
As políticas públicas para o enfrentamento ao HIV e Aids têm negligenciado de forma importante as questões relacionadas às desigualdades de gênero e seus impactos no cenário da epidemia. Ao longo dos anos, estamos assistindo à desconexão da agenda proposta pelo governo federal com as questões relacionadas às garantias dos direitos humanos e, em especial, os direitos humanos das mulheres e o enfrentamento às violências de gênero.
No último ano, com o advento da pandemia de covid-19, ficaram mais evidentes a importância de compreendermos o impacto das desigualdades de gênero, de raça/cor, econômicas e sociais no processo de adoecimento e/ou risco dos sujeitos.
A epidemia de Aids e a tuberculose, há muito já nos apontavam o quanto as epidemias não são democráticas e atingem, de forma desigual, grupos historicamente excluídos e minorias, entre elas, as mulheres. A pandemia de covid-19 tem exposto de forma singular esta situação.
Segundo o Conselho Nacional de Saúde[2], as mulheres estão entre as mais afetadas. Isso porque elas são as mais expostas ao risco de infecção e às vulnerabilidades sociais como desemprego, violência, falta de acesso aos serviços de saúde e aumento da pobreza.
Nesta seara observamos um recrudescimento da violência contra as mulheres, um aumento do número de feminicídios, um ataque sistemático aos direitos sexuais e reprodutivos, o cerceamento ao aborto legal, um incremento do desemprego e do trabalho precário entre as mulheres, a fragilidade das políticas sociais e a ausência de resposta governamental articulada e comprometida com o enfrentamento desta conjuntura.
Além disto, as mulheres estão na linha de frente do cuidado, tanto nos serviços de saúde quanto no trabalho doméstico, remunerado ou não remunerado. Segundo o Conselho Nacional de Enfermagem[3], as mulheres correspondem a 85% das infecções por Covid 19 entre profissionais de enfermagem e 64% dos óbitos nesta categoria.
Mas, afinal, o que a epidemia de HIV e Aids tem a ver com isso?
O impacto da pandemia nas políticas públicas de HIV e Aids no Brasil é inquestionável. Os dados do levantamento[4] “O impacto da epidemia de Covid-19 nos serviços de TB, HIV e Aids no Brasil”[5] apontam redução de 18% nos recursos financeiros destinados às políticas HIV e Aids e superior a 50% nas equipes técnicas dos serviços de saúde de referência. Consequentemente, temos retrações importantes na oferta de diagnóstico e nos serviços de assistência às pessoas que vivem com HIV e Aids, bem como nas ações de prevenção.
E qual a relação deste cenário no enfrentamento ao HIV e Aids entre as mulheres?
O desmantelamento[6] de serviços e ações de garantia aos direitos sexuais e reprodutivos provocaram o aumento da mortalidade materna e o cerceamento das mulheres aos métodos contraceptivos e insumos de prevenção. Esta conjuntura combinada com o agravamento das violências e a crise econômica ampliam a vulnerabilidade das mulheres para uma infecção por HIV.
Ainda segundo o levantamento, os dados refletem o quanto o acesso aos insumos de prevenção nos serviços de saúde é desigual. Enquanto 92% dos homens têm acesso a preservativo externo (camisinha masculina) e 34% a gel lubrificante no cotidiano dos serviços, este percentual se reduz, respectivamente, para 71% e 23% para mulheres. O acesso ao preservativo interno (camisinha feminina) ainda é reduzido, somente 35% das entrevistadas relatam que têm acesso ao preservativo interno e, destas, 20% ao de borracha nitrílica.
Além do acesso reduzido aos insumos de prevenção, as informações do levantamento também demonstram o quanto as mulheres vinculadas aos serviços de saúde estão alijadas das informações relacionadas às “novas estratégias de prevenção”. Os dados indicam que 49% das entrevistadas desconhecem a Profilaxia Pós Exposição (PEP) e 51% nunca ouviram falar em Profilaxia Pré Exposição (PrEP). Importante ressaltar que a PEP é uma política consolidada há mais de 15 anos na rotina dos serviços do SUS e a PrEP, embora não seja de acesso universal e não esteja disponível para a maioria das mulheres cisgêneras, foi incorporada nos serviços de saúde em 2017.
Este cenário fica mais complexo com o aumento da violência doméstica. Segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública[7], no primeiro semestre de 2020 houve incremento no número de feminicídios e de chamadas de urgência por agressão, o que indica o quanto o isolamento social intensificou a violência doméstica. Esta situação expressa menos possibilidades de gerenciamento de suas vidas sexuais, na adoção de métodos contraceptivos e negociação de práticas sexuais seguras.
A similaridade de alguns indicadores evidencia a correlação entre as duas epidemias. O Brasil ostenta 77% dos óbitos de gestantes e puérperas por covid-19 do mundo, sendo a taxa de mortalidade entre mulheres negras o dobro da taxa das mulheres brancas. Quando comparamos este cenário com o retratado pelo Boletim Epidemiológico de HIV e Aids 2020[8], percebemos similaridades importantes. Segundo o Boletim houve um crescimento de 21,7% nas taxas de detecção de HIV entre gestantes nos últimos dez anos, sendo que destas, 49,5% se autodeclaram pardas e 13,7% pretas. Ainda, apesar das infecções entre mulheres terem demonstrado um decréscimo nos últimos anos, desde 2009 os casos de aids são mais prevalentes em mulheres negras e a proporção de óbitos entre mulheres negras foi de 62%. A convergência destes cenários tangibilizam o quanto os contextos de vulnerabilidade social são determinantes no processo de adoecimento e morte das mulheres.
A crise abancada pela pandemia de covid-19 tem ampliado os retrocessos no campo da saúde, da promoção e garantia de direitos, especialmente das meninas e mulheres negras. Este fenômeno está sincronizado com a avalanche conservadora e fundamentalista que tem assolado o Brasil.
A invisibilidade das políticas para mulheres está articulada com as políticas de governos que paulatinamente promovem o desmonte das políticas públicas comprometidas com a promoção da emancipação e dos direitos das mulheres. Ou seja, o apagamento social das pautas das mulheres nas políticas de HIV/Aids e nas ações de enfrentamento à covid-19 é mais uma manifestação das violências de gênero.
Apesar do número de óbitos ser maior entre os homens, tanto a epidemia de Aids quanto a de Covid 19 impactam, de forma inquestionável, a vida e os direitos das mulheres. Nesta perspectiva, o legado da pandemia de covid-19, para além do aprofundamento da crise econômica e das desigualdades sociais, aponta para um recrudescimento da epidemia de HIV e Aids entre mulheres.
Segundo o Instituto Lowy[9], o Brasil é o pior país do mundo no enfretamento à pandemia de covid-19. Em tempo, o Brasil é o quinto país com maior número de feminicídios e o país que mais mata mulheres trans no mundo. Precisamos de uma análise atenta para estas intersecções, ampliando o debate sobre seus desdobramentos no cotidiano e as dinâmicas sociais que se estabelecem a partir deste paradigma.
8 de março é mais um dia de luta e resistência para nós, mulheres.
Mais um momento para reafirmarmos e intensificarmos nosso compromisso com a construção de políticas que sejam feministas, antirracistas e que fomentem a emancipação e o protagonismo das mulheres.
Neste 8 de março, precisamos gritar ainda com mais força: parem de nos matar!
[1] Ativista dos movimentos sociais de luta contra aids e tuberculose, Presidente do GAPA RS e Conselheira do Fórum Ong aids RS.
[2] Disponível em < https://bit.ly/3bpEY9W > acesso Mar/2021.
[3] Em matéria veiculada, disponível em < https://bit.ly/3kXbWlq > acesso Mar/2021.
[4] Disponível em https://thinkolga.com/report/saude/ acesso Mar/2021.
[5] O Impacto da Covid19 nas Políticas de Tuberculose e HIV e Aids: um Levantamento da Sociedade Civil Brasileira em alinhamento com o Relatório de Progresso do Secretário Geral da ONU para a TB e suas recomendações. Disponível em < https://adobe.ly/3kScSY8 > acesso Mar/2021.
[7] Disponível em < https://bit.ly/3brbXuH > acesso Mar/2021.
[8] Disponível em < https://bit.ly/3l2r1Sz > acesso em Mar/2021.
[9] Disponível em < https://bit.ly/38g69lJ > acesso Mar/2021.
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