O psicólogo Jean Dantas (Arquivo pessoal)
Por Jean Dantas
Uma sensação estranha vem me assaltando a alma nestes últimos anos, quando estou diante da elaboração de pequenos relatos da vida de gente nova, nem tão nova ou com longas luas, que chegaram a finitude de suas existências. Confesso que começo a ter a impressão de estar me especializando em Nota de Falecimento.
O escrever Nota de Falecimento é ofício indigesto, pelo menos para mim, mas como todo ofício precisa ter um tutor para a sua realização, nesse caso deve ser alguém eleito pela aproximação afetiva ou conhecimento da pessoa a ser relatada. Mas, redigir Nota de Falecimento de pessoa amada e, importante para o Estado, as ONGs, academia e, principalmente para a sua família, amor e amigos. Não é algo mecânico e, a cada frase composta, eu me remeto a pessoa como se eu estivesse a olhar num espelho, pois a minha humanidade me coloca nessa situação. Aquela pessoa sobre a qual escrevo teve seus sonhos encerrados; deixou um legado a terminar ou não; na sua casa tem alguém a chorar a sua falta e corações estão sangrando lágrimas em algum canto da cidade.
O HIV e a aids me ensinaram que a finitude é concreta e, por mais creme de prevenção de rugas que eu insista em passar na minha linda cara nariguda, as marcas na pele vão se instalar e anunciar o caminho longo ou curto, do trajeto à minha finitude.
Nos últimos anos venho escrevendo mais Notas de Falecimento do que fazia antes. Nestes textos me valho do legado de pessoas, com muita parcimônia, afeto e um toque de bom humor, afinal sou assim, mas nada disso não aplaca as minhas indagações sobre aquela finitude que tanto escrevo numa tela de computador. Em meio às lembranças e a escrita, as reflexões se misturam e não consigo chegar a respostas para justificar aquela e outras tantas mortes que não deveriam ter ocorrido.
Você pode estar pensando que sou arrogante, pelo final da frase anterior, mas prefiro encarar esta verdade a se acomodar no colchão macio da fatalidade, pois isso não aplaca as dores do meu pensamento que insiste em perguntar: Será que esta morte poderia ser evitada? Será que falhamos na atenção às suas necessidades? Por que não escutamos seus gritos silenciosos? Será que nós a abandonamos a sua própria sorte? Será que não teríamos condições de amenizar o sofrimento que levou ao abandono de si mesma? Será que aquela pessoa não suportou o peso do estigma do HIV/AIDS e desistiu da vida? Será que não conseguimos perceber o seu fardo? Será que não conseguimos sair das nossas amarras individuais e coletivas para estender a mão àquela pessoa? Será que não conseguimos amar aquela pessoa como ela mereceria ser amada? Será que perdemos a nossa capacidade de cuidar uns dos outros, como fazíamos no início da epidemia do HIV/AIDS?
Outros mortos que são foco das minhas Notas também me despertam outras dúvidas: será que a estrutura de saúde à disposição daquela pessoa não conseguiu evitar a sua morte? Será que não estamos conseguindo manter uma estrutura de saúde púbica que evite mortes evitáveis? Será que eu fiz tudo que estava ao meu alcance para evitar aquela morte?
Essas são apenas uma das várias indagações infinitas que assaltam a minha alma nos momentos solitários de escrita de Notas de Falecimento.
A abundância de mortes provocadas pela Covid-19 me traz velhos fantasmas que na minha ingenuidade já estavam enterrados nos livros de história do HIV/AIDS ou repousando na periferia da consciência das pessoas vivendo com HIV/aids e todos seus familiares, amores e amigos. Nestes últimos meses, cada vez mais começo a ver pessoas do meu entorno e vários membros do meu universo afetivo morrendo pela Covid-19 e começo a escrever Notas, agora também olhando para uma nova doença com características de uma velha patologia que me acompanha há mais de 33 anos.
As mortes provocadas pela AIDS fizeram os(as) militantes, profissionais de saúde, gestores, acadêmicos e jornalistas a criar uma capacidade de resignação e empatia pela dor do outro, que com afeto e técnica auxiliaram na customização de todas as práticas de saúde baseadas no respeito ao direito de viver com dignidade, mesmo diante da morte iminente.
O legado de todos os atores imbricados na resposta ao HIV/AIDS pode servir de um belo painel de experiências bens sucedidas para os nossos colegas da saúde, academia e gestores que estão na linha de frente do enfrentamento a Covid-19, para também customizarem uma política do SUS, participativa, baseada em dados científicos e no respeito aos direitos humanos.
As respostas à Covid-19 e ao HIV/AIDS devem primar pela defesa intransigente da pessoa humana em toda a sua plenitude, pois somente dessa forma conseguiremos reduzir tantas mortes, tanto sofrimento e Notas de Falecimento, que acredito poderiam ser trocadas por Notas de Agradecimento a todas as vitórias de quem vive com HIV/AIDS e daqueles(as) que ser curaram do coronavírus.
* Jean Dantas é psicólogo.
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