Faltam 86 médicos nos serviços de HIV/aids da rede municipal de SP

Levantamento foi realizado antes da pandemia de Covid-19.
Atual momento pode ter agravado ainda mais a falta de profissionais, necessários para acompanhar cerca de 43 mil pacientes com HIV nos serviços municipais

Em março de 2020, antes da emergência da pandemia de Covid-19, faltavam pelo menos 86 médicos nos serviços da rede municipal especializada de saúde de São Paulo que atendem a pessoas com HIV e aids. Esta era a diferença entre a necessidade dimensionada pela própria Secretaria Municipal de Saúde (208 médicos) e o número de médicos existentes (122) nos serviços naquele mês, revela estudo realizado por pesquisadores do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

Foram considerados 16 serviços assistenciais da rede municipal especializada (RME) em HIV/aids, sob administração direta da Prefeitura de São Paulo. Juntos, são responsáveis pelo tratamento e acompanhamento de 42.896 pacientes.

Chama a atenção o grande déficit de infectologistas – faltavam 48 médicos – e de especialistas em clínica médica – faltavam 11 médicos. Esses especialistas são os principais responsáveis pela rotina de tratamento das pessoas com HIV, pois prescrevem os medicamentos antirretrovirais, solicitam e analisam os exames laboratoriais necessários ao seguimento clínico dos pacientes.

Dentre os 16 serviços considerados (Quadro 1), apenas o Serviço de Atendimento Especializado (SAE) Campos Elíseos não apresentava déficit de infectologistas. Em outros três serviços da capital paulista (Santo Amaro, Nossa Senhora do Ó e Herbert de Sousa) faltavam cinco médicos infectologistas em cada um. Havia déficit de médicos clínicos em sete serviços.

Ao todo, 122 médicos estavam em atividade nos serviços municipais de HIV/aids. Além de 36 infectologistas e 13 clínicos, havia 27 ginecologistas e obstetras, 24 pediatras e 22 médicos de outras especialidades.

Os 24 pediatras devem ser considerados à parte, pois são responsáveis pelo atendimento específico de pessoas com HIV menores de 18 anos e correspondem a 3% dos 42.896 pacientes em tratamento na rede municipal, conforme estimativa baseada na proporção de casos novos segundo idade nos dados dos Boletins Epidemiológicos do SUS. A prefeitura dimensionou em 22 o número ideal de pediatras, portanto não haveria déficit desses especialistas para atendimento de crianças e adolescentes com HIV/aids na rede municipal.

Nas demais especialidades médicas (excluindo infectologistas, clínicos e pediatras) havia déficit de 29 especialistas (Quadro 2) nos serviços municipais paulistanos que atendem HIV e aids. Diante da necessidade de tratamento especializado para além do HIV e da aids, geralmente os pacientes são encaminhados à rede ambulatorial ou hospitalar do município. Alguns serviços de referência em aids, no entanto, mantêm ginecologistas e obstetras, psiquiatras, dermatologistas, entre outros.

Quanto aos médicos de outras especialidades, presentes em serviços de HIV e aids (fora infectologistas, clínicos e pediatras), além do atendimento pontual de problemas de saúde ligados a cada especialidade, parte deles atua no seguimento clínico de adultos com HIV nos serviços. No âmbito da pesquisa Qualiaids, em 2016, 24% desses médicos também acompanhavam a rotina do trata- mento de pacientes com antirretrovirais.

Um médico para 685 pacientes
O estudo analisou o número disponível de médicos responsáveis pelo seguimento clínico em relação ao número de pacientes acompanhados pelos serviços (Quadro 3).

Foram considerados todos os infectologistas e clínicos e parte dos médicos de outras especialidades (24% deles) que também acompanham pacientes sistematicamente. Foram excluídos os médicos pediatras, que atendem grupo específico e minoritário de pacientes; e ainda 76% dos médicos de outras especialidades que não fazem acompanhamento do tratamento em HIV e Aids. Em dezembro de 2019, 41.609 adultos estavam em tratamento nos serviços municipais de HIV e Aids sob gestão do município.

No conjunto dos 16 serviços analisados foi encontrada a relação de um médico para seguimento de cada grupo de 685 pacientes. Trata-se de oferta insuficiente de médicos, não só considerando o próprio dimensionamento da Prefeitura de São Paulo, mas também levando em conta os parâmetros produzidos pelo estudo Qualiaids. Segundo o Qualiaids, o padrão esperado, baseado no atual protocolo clínico e na taxa de falta nas consultas, e? de um médico para 438 pacientes (Caderno de Recomendações Qualiaids: www.qualiaids.fm.usp.br).

Alguns serviços municipais de São Paulo são mais afetados pela insuficiência de médicos, com destaque para Herbert de Souza, Fidelis Ribeiro, Butantã e Vila Prudente, todos com mais de 1100 pacientes acompanhados por cada médico. Apenas um serviço municipal, Jardim Mitsutani, tem relação médico/paciente acima da relação de 1/438 esperada pelo Qualiaids.

Segundo a pesquisa Qualiaids, em 2016, na mesma rede de serviços, o número relatado de pacientes em tratamento foi de 425 pacientes por médico. Ou seja, houve uma piora significativa na oferta de acompanhamento médico, uma vez que a entrada de novos pacientes com HIV e aids na rede municipal não foi acompanhada da contratação de novos médicos ou de reposição de profissionais que deixaram os serviços.

Nos últimos seis anos (2014 a 2019) mais de 32 mil novos pacientes diagnosticados com HIV deram entrada nos serviços municipais (Quadro 4).

Para concluir
A falta de médicos pode comprometer a saúde das pessoas diagnosticadas e em tratamento, além de dificultar o controle da epidemia do HIV e aids na cidade de São Paulo.

Entre as consequências da falta de médicos destacam-se a grande demora entre o diagnóstico, a primeira consulta médica e o início do tratamento de novos pacientes. Além disso, não e? alcançado o número mínimo suficiente de consultas médicas para o seguimento dos pacientes. Recomenda- se, para pacientes novos, seis consultas por ano e, para pacientes estáveis, pelo menos duas consultas por ano, o que fica inviabilizado diante da insuficiência de médicos.

Torna-se urgente, portanto, a contratação ou alocação imediata, pela Prefeitura de São Paulo, de pelo menos 86 médicos para os serviços municipais de HIV e aids, conforme estimativa da própria Secretaria Municipal de Saúde. Seriam necessários no mínimo 71 novos médicos apenas para o seguimento dos pacientes já em tratamento antirretroviral na rede municipal, sem considerar que mais pessoas, recém-diagnosticadas, darão entrada nos serviços.

Destaca-se, segundo o estudo Demografia Médica, do DMP-FMUSP, que a cidade de São Paulo tem alta oferta e alta concentração de médicos. A capital contava em 2020 com 67 mil médicos, uma densidade de 5,6 médicos por 1.000 habitantes, concentração muito acima da média dos países que compõem a OCDE (3,3 médicos por 1.000/habitantes). Atuam na capital 7.500 especialistas em clínica médica e 835 médicos infectologistas.

“Neste cenário, se houver decisão política, acompanhada da oferta de condições adequadas de trabalho e remuneração aos profissionais, é totalmente viável a contratação, pela Prefeitura, de médicos para suprir o grave déficit da rede municipal especializada em HIV e Aids”, afirma o professor Mário Scheffer, do DMP/FMUSP.

Ele acrescenta que “este levantamento, embora localizado na cidade de São Paulo, é um exemplo do que pode ser feito por pesquisadores e pela sociedade civil em outros locais do País, com base em dados administrativos disponíveis, por meio da lei de acesso à informação e valendo-se de parâmetros de qualidade dos serviços já produzidos, como os do Qualiaids”. Por fim, Scheffer recomenda que os resultados sejam compartilhados com as ONG, programas de Aids, poder legislativo municipal, Ministério Público e Defensoria Pública, para que providências concretas sejam tomadas.

Controle social
Na próxima quarta-feira (24), por iniciativa do vereador Gilberto Natalini (PV), o estudo será pauta da Comissão de Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher da Câmara Municipal.

O vereador Donato (PT), da oposição ao governo Covas, também oficiou o secretário da Saúde da cidade de São Paulo solicitando “informações detalhadas” sobre a falta de médicos na RME.

Para Alisson Barreto, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS no Estado de São Paulo “os serviços especializados perdem profissionais por questões de aposentadoria e não são repostos”. Segundo ele, o problema acontece “com toda equipe do serviço, da recepção até o infectologista”.

Na semana passada, o promotor Arthur Pinto Filho, da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo encaminhou ao secretário municipal de saúde, Edson Aparecido dos Santos, a representação feita por Scheffer ao MPE.

“Acho preocupante esses números, e com a tendência de novas aposentadorias o quadro deve ficar ainda mais enxuto”, reflete o presidente do GIV – Grupo de Incentivo à Vida, Claudio Pereira.

Saúde Pulsando perguntou ao professor Mário Scheffer por que ele próprio entrou com uma representação no MPE.

“Problemas nos serviços de saúde que prejudicam a saúde e a vida dos pacientes precisam ser acompanhados pelos órgãos de controle e instâncias de participação social. Por isso o estudo foi encaminhado ao Ministério Público, à Câmara Municipal e Defensoria Pública”, respondeu ele.

Scheffer espera, ainda, que o estudo “sirva de material para diálogo entre ONGs e programa municipal , muito embora tanto a área técnica quanto parte do movimento de aids estejam hoje um tanto amalgamados e acomodados, sem respostas para os reais desafios da epidemia na cidade , sem nenhuma inovação em prevenção, e especialmente pouco atentos à evidente piora dos serviços que assistem as pessoas que vivem com HIV. Quem semeia omissão colhe epidemia, como infelizmente vivemos agora com o coronavírus”.

Segundo o presidente do Fórum das ONG/Aids do Estado de São Paulo, Rodrigo Pinheiro, “esta é uma reivindicação antiga do Foaesp; é um problema crônico dos governos que não conseguem encontrar uma solução na reposição dos profissionais da saúde”.

Ele lembra que no início da gestão Doria no município de São Paulo, o Foaesp oficiou a prefeitura paulistana sobre o déficit de profissionais de saúde na RME. Houve uma reunião com a então secretária-adjunta da Saúde paulistana, Maria da Gloria Zenha Wieliczka, o Foaesp e a coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids, Maria Cristina Abbate. Da reunião, seria encaminhada verificação de possibilidade de contratação de médicos via concurso público então em vigor para a Autarquia Hospitalar Municipal.

“Às vezes parece que isso é uma forma da Secretaria fazer com que os serviços especializados sejam transferidos para as OS [organizações sociais em saúde]. Dentre os serviços da prefeitura, outros serviços de saúde já estão sendo administrados pelas OS e, dessa forma, a prefeitura tenta não se responsabilizar pelo péssimo serviço prestado à população”.

A Secretaria Municipal da Saúde deve responder ao MPE, bem como à Comissão de Saúde da Câmara de Municipal de São Paulo. Os dez dias dados pelo MPE já foram esgotados.

Os dados sobre oferta, dimensionamento e déficit de médicos foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Os dados sobre número de pacientes atendidos nos serviços foram solicitados diretamente ao Programa Municipal de DST/Aids. A estimativa de pacientes segundo idade foi obtida nos Boletins Epidemiológicos oficiais do Sistema Único de Saúde (SUS).

Os parâmetros de atendimento médico foram extraídos da pesquisa Qualiaids, da FMUSP, que avalia a qualidade dos serviços do SUS que prestam assistência ambulatorial em HIV e aids.

O Estudo foi realizado no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
Autores: Mário Scheffer, professor e coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil; Maria Ines B. Nemes, professora e coordenadora da Pesquisa Qualiaids; Ana Maroso Alves, doutoranda e integrante da Pesquisa Qualiaids.

*Parte do material aqui publicado integra Cadernos Pela Vidda nº 54 (junho de 2020), publicação do Grupo Pela Vidda/SP.

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