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Por Jacqueline Rocha Côrtes

Transpassar, Transbordar, Transformar, Transpor, Transferir, Transpirar, Transcender, Transfazer, Transfundir, Transportar, Transcrever, Transfigurar, Transmigrar, Transmutar, Transgenerizar, Transvestilizar, TRANSexualizar...

Eu podia TRANSITAR por onde eu quisesse, como eu quisesse, quando eu quisesse, se eu quisesse e enquanto eu quisesse. E ainda posso! Mas meu EU interior clamou por TRANSfixar a minha TRANSEXUALIDADE BINÁRIA. Para mim, meu gênero sempre foi ELA; meu artigo: A; meu adjetivo e pronome: DELA.

Eu me TRANSformei numa MULHER REDESIGNADA.

E assim sigo, por décadas, encantada, realizada, plena, resolvida.

Essa é minha verdade, porque sou o espelho de mim mesma. Mas sabemos que não há verdade absoluta, felizmente! Cada qual com seu, ou sua cada uma.

Sou representante de uma classe? Não, não represento ninguém, nenhuma forma de ser, de querer, de gostar ou de viver. Apenas faço parte de uma classe de pessoas que tem uma característica incomum: SER QUEM É ou QUEM PENSA SER. TRANSgente.

Bem, identidades à parte, e entrando no (In) comum da cidadania do sujeito, ou da sujeita, nós, mulheres trans: travestis e transexuais vivemos ainda numa enorme invisibilidade e exclusão. Nossa expectativa de vida é de 35 anos, metade da expectativa de vida de uma mulher CISgênera. Por que será? Como será?

E você sabia que a prevalência do HIV em mulheres transexuais e travestis gira em torno de 30%? A população mais vulnerável às IST em geral. Por que será? Como será?

Você consegue sentir (porque entender, eu penso que sim) o que é estigma, preconceito, discriminação? Conhece essas “doenças”?

Você, que me lê agora, já se imaginou andando pelas ruas (em épocas não pandêmicas, e pandêmicas – OLHA SÓ!) em direção ao seu trabalho, ou encontro com alguém, ou à escola, ao mercado, e no seu trajeto o seu ouvido doer de tanto escutar xingamentos, provocações, humilhações, e tapas, pontapés, pauladas, chutes, socos e, muitas vezes tiros e facadas?

Você, mulher CIS, já se imaginou escutar frases do tipo: “você é uma monstra”, “Mulher barbada, vai pra casa seu Viado”, ou ainda, “Você tá pensando que é macho sua sapatona, tá pensando que é homem porque tem bigode e barba (para um homem trans)? Vai ver como é gostoso ser mulher, eu vou te pegar”. Ou ainda: “aberração da natureza, demônio, tem mais é que morrer”. Uff, que angústia, não?

Então, não precisa desenhar. Imagina a saúde mental de uma pessoa que passa toda uma vida tentando fugir de situações assim para não receber do mundo tanto ódio e violência? SE anulando e se escondendo para conseguir passar pela vida, mas “não em brancas nuvens, ou em plácido repouso adormecer...” Depressão, ansiedade, transtornos fóbicos, ideação suicida, sentimento de não pertencimento, de não existência, de objeto e abjeto. Revolta, tristeza, solidão, fome, frio, sede, medo.

Bem, de experiências como essas que descrevi aqui para um hospital ou um cemitério, ou ainda uma prisão, é um pulinho. Ou melhor, que pulinho que nada. Uma pessoa TRANS não pula para lugar nenhum, é forçosamente posta lá com toda a violência transfóbica que mora dentro de grande parte de uma sociedade machista que ainda não sabe o que é humanidade, direitos e deveres. Que não entende que a diversidade é o que há de mais real no planeta Terra. E não sabe (com) viver com essa diversidade ampla. Sim, porque não é só sobre gênero, ou sexo, ou maneirismos, ou visuais, ou corpos, ou cores, ou falas, ou gestos, ou sabores; é sobre ideias, ideais, sonhos, inteligências, trabalho, saúde, lazer, brincar, caminhar, ir e vir, criar, participar, contribuir, diversificar, melhorar, EVOLUIR. Nossa civilização ainda é metade humana, e metade MINOTAURO.

Será que a Covid-19 vai ajudar, depois que a onda passar? Será?

Mas não é só de constatações vis e cruéis, desanimadoras ou violentas que vive o homem, a mulher (ou nenhum dos dois...) TRANS. Muito pelo contrário, somos resilientes, teimosas e teimosos, guerreiras e guerreiros, sobreviventes, estamos sempre nos TRANSvisitando e TRANSFORMANDO. Hoje há várias mulheres trans e travestis na academia, graduadas, mestras, doutoras. Não só mulheres e travestis, como também homens TRANS. E aqui eu descrevo exemplos de ambos os gêneros, como também de pessoas não binárias, mas me permitam amigas, amigos e amigues, usar no meu texto, adjetivos e substantivos femininos, que são tão íntimos, identitários e inclusivos para mim e muitas de “nossa” classe, como uma não pretensiosa auto-homenagem a mim e a todas as mulheres trans e travestis. Somos professoras, engenheiras, ativistas, policiais, pilotas, arquitetas, balconistas, administradoras, empreendedoras, gerentes, motoristas, técnicas, juízas, advogadas, médicas, enfermeiras, caminhoneiras, zeladoras, faxineiras, serventes, estudantes, filhas, mães, irmãs, noras, sogras, e putas. SOMOS CIDADÃS DESTE PAÍS, MANO, MINA, MANA E MONA!

“TransitHIVa no Ar”, por Jacqueline Rocha Côrtes
Jacqueline Rocha Côrtes é uma mulher de 60 anos, idosa (risos), professora aposentada, casada, mãe, esposa, irmã, filha, amiga, companheira, colega, ativista, alegre, triste, fraca, forte, brincalhona, séria, destemida, disponível e solícita, impaciente, suave e firme, decidida, compreensiva, e brava. Bem-sucedida em meus sonhos e desejos, sofrida, pisada, humilhada, agredida, respeitada, acalentada, desejada, querida, acarinhada e amada. Muito amada. Agradecida e grata. Sou uma mulher, e dentre estas características minhas, também sou uma transexual redesignada e vivo com HIV e AIDS há 26 anos! E tenho um filme documentário, longa-metragem, que conta a história da minha vida. ‘MEU NOME É JACQUE’. Tá, meu bem?


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