Hand photo created by rawpixel.com - www.freepik.com
Por Jean Carlos de Oliveira Dantas
“O romance clássico está fora de moda.
O humanismo está fora de moda.
Mas quando defendo Balzac e o humanismo talvez esteja seguindo a moda de amanhã.
Agora vocês cospem em cima do abstrato.
Portanto eu estava adiantada sobre vocês há dez anos atrás quando o recusava.
Não.
Existe outra coisa além das modas:
Existem valores, verdade.”
Simone de Beauvoir, in As Belas Imagens
Era uma vez, um rapaz chamado Rock Hudson, de 35 anos de idade, gay, de olhos tristes, roupas simples e morador de um terreno que outrora abrigou uma importante transportadora na região da Rodoviária da Cidade de Feitiço, uma bela cidade da região noroeste do estado de São Paulo. Rock vivia com seu namorado e dois colegas de jornada da vida pelas ruas da cidade, comercializando seus artesanatos de latinhas de cerveja/refrigerante, pedindo dinheiro, comida e cigarros em algumas esquinas, que também lhe forneciam goles e goles de cachaça – a fiel companheira que alivia as dores de muitos que têm a rua como residência.
Em uma dessas esquinas, Rock Hudson conheceu Herbert Daniel, um ativista das causas humanas do HIV/aids, que estava coordenando um projeto de Redução de Danos, que tinha como objetivo atuar na prevenção do HIV/aids entre pessoas que faziam uso de drogas injetáveis na Cidade de Feitiço. Deste encontro ao acaso, se é que podemos pensar que existe acaso em encontros e desencontros humanos, nasceu um vínculo que se prolongou para a existência daqueles homens.
O encontro se deu por volta das 13 horas de uma sexta-feira, quando Herbert Daniel voltava do almoço num restaurante na Praça da Matriz. Um encontro de dois curiosos que adoravam saber da vida e da vida das pessoas. Rock Hudon, perguntou para Herbert, se ele tinha cigarros ou alguma moedinha para lhe dar, pois queria tomar um café. Herbert, que por sua vez já estava a caminho de tomar o seu costumeiro café num boteco tradicional do centro da cidade, que fazia um café coado em pano sagrado, convidou Rock para acompanhá-lo.
A recepção no bar não foi uma das melhores, porque Rock estava muito suado, com algumas roupas sujas e olhos marejados por alguma aguardente. Mas, o café foi servido e tomado rapidamente pelos clientes. Após a breve estadia no boteco, Rock olhou no fundo dos olhos de Herbert e falou que estava querendo conversar um pouco. Naquele momento, Herbert ligou para seu serviço para dizer que iria se atrasar um pouco e convidou Rock para sentarem na Praça do Coreto, pois lá tinha um belo Ipê Amarelo que fazia uma sombra gostosa e necessária para uma boa prosa.
Os jovens senhores se sentaram confortavelmente naquele banco de madeira envernizado pela nova administração pública e começaram a dialogar sobre coisas que somente a intimidade e a confiança permitem. Rock, atentou para a camiseta branca com laço vermelho, a descrição das palavras HIV/aids e o símbolo da governança pública local, que Herbert estava usando e perguntou se ele trabalhava no serviço de aids do hospital local. Herbert, respondeu que não trabalhava no serviço do hospital, mas no outro serviço de aids que ficava ali perto, atrás do mercado de pulgas. Rock, falou que tinha aids, mas nunca fez tratamento. Herbert, perguntou por quê. Rock respondeu que ficou muito magoado com o ex-marido, porque foi ele que tinha passado o vírus. O ex-marido tinha traído Rock com outro rapaz. Um rapaz que todo mundo do bairro sabia que tinha aids. Rock, continuou falando que depois daquele fato, ficou desgostoso da vida, separou-se do rapaz, começou a beber, ficava sempre irritado e agressivo, o que acabou gerando sua demissão do emprego e, por fim, de tanto pular de bar em bar, acabou indo morar nas ruas da cidade. Herbert, percebendo que a tristeza estava começando a brotar nos olhos de Rock, perguntou se naquele momento ele estava amando, onde morava e se gostaria de voltar a fazer o tratamento e morar em uma nova casa.
Rock foi se alegrando e já soltou um gritinho, dizendo que não dá para ficar sozinho, porque o corpo sempre “pede de cume”, e soltou uma risada gostosa. Falou que estava amando e morando com seu novo amor, Renato Russo, que deixava a vida mais colorida juntamente com outras rachas – Sandra Brea e Claudia Magno. Herbert, perguntou se ele e a sua equipe do projeto de redução de danos poderiam fazer uma visita naquela noite. Rock, disse sim e passou o endereço, já dando todas as coordenadas. O papo se estendeu mais um pouco, mas se despediram porque Herbert tinha que retornar para o trabalho e Rock ainda tinha que passar num ferro velho para pegar um saco de latinhas doado pelo dono. E cada um partiu para seus destinos.
Conforme combinado, Herbert Daniel e sua equipe, naquela noite fria de sexta-feira iniciaram os trabalhos do projeto com a visita a casa de Rock Hudson. Quando chegaram à rua indicada, Herbert e os redutores de danos entraram em outro terreno abandonado, com lanternas e todo cuidado, pois a escuridão dominava; por vezes, chamou o nome de Rock, mas não houve nenhuma resposta. O grupo vasculhou todos os lugares, mas não achou Rock e a sua nova família. Mas, na saída do terreno, Herbert avistou Henfil em frente à sua casa. Henfil era esposo de Brenda Lee, uma bela jovem que trabalhava no hospital da cidade. Aproximando-se de Henfil, Herbert percebeu que Brenda saiu da casa e veio em sua direção, e neste momento cumprimentou-a e perguntou se ela ou o marido conheciam o Rock, Renato, Sandra e Claudia. Brenda não só conhecia todo mundo, como levou Herbert e os seus colegas até o lugar, que na verdade era ao lado de sua casa e em frente ao terreno que eles entraram primeiro.
Herbert e o seu povo foram entrando devagarinho e com respeito, pois aquele terreno era a casa de Rock e sua família. Depois de andar pela metade do terreno, eles viram duas mulheres, Sandra e Cláudia. As garotas foram bem receptivas, tratando todos com muita alegria, respeito e curiosidade. Herbert perguntou se Rock estava na casa, e sem muitos rodeios elas disseram que sim e apontaram para o lugar onde o nosso ilustre morador pernoitava com seu amor. Herbert deixou a equipe com as garotas e foi ao encontro de Rock.
O sono dos justos deve ser sonado num lugar de recanto, maestria e singelo conforto, mas estas qualidades não eram encontradas naquele minúsculo quartinho abandonado, que cabia somente um colchão de solteiro usado por Rock e Renato e seus bichinhos de pelúcia.
Herbert foi se aproximando do quarto chamando o nome de Rock, que de imediato falou para ele se chegar, o que acabou interrompendo o descanso do casal. Depois dos cumprimentos, Rock ficou feliz em ver que Herbert, pois ele cumpriu o seu prometido e já foi se levantando da cama com seu amor, para se juntar aos outros na fogueira que estava acesa no meio do terreno. Naquela noite de lua cheia, todos conversaram sobre vários assuntos, desde aqueles relacionados ao objetivo do projeto de redução de danos como outros, sobre respeito, dignidade e companheirismo. Uma conversa gostosa e interessante, que foi arrematada por uma frase de Renato Russo – marido de Rock – usar preservativo com o seu companheiro era um sinal de respeito a ele: “desta forma estou me protegendo e protegendo ele”. Naquele momento, após ouvirem as palavras de Renato, Herbert e sua equipe ficaram com um certo espanto, pois no fundo de vossas almas existia o preconceito, pois não esperavam uma fala como aquela, de uma pessoa que vivia pelas ruas da cidade, sobrevivendo e aliviando suas dores pelo lenitivo da cachaça. Para Herbert, aquela noite foi uma das mais especiais que vivenciou em sua jornada Pela Vidda.
Herbert e sua equipe se despediram de Rock e de sua família para seguir em direção aos outros campos de ação do projeto, pois o trabalho estava apenas começando. A partir daquele dia, a casa de Rock, conforme combinado com ele e todos os seus moradores, foi incorporada ao projeto de redução de danos, passando a ser visitada a cada 15 dias.
Naquele mesmo final de semana, no sábado, Herbert foi visitar uma grande amiga – Cida Lemos, filha de um antigo comerciante da Cidade de Feitiço – Caio Fernando Abreu. Cida comentou que estava querendo doar alguns produtos da antiga loja do pai e precisava dar um destino naquele material para liberar um espaço na sua casa, e a proposta era fazer uma doação. Naquele dia, Herbert saiu da casa de Cida Lemos com vários cobertores e dois sacos de cheios de meias, gravatas, camisas femininas e camisas e calças masculinas de tergal.
No dia seguinte, um domingo à noite, Herbert pegou seu carro supersônico – “Trovão Azul”, e partiu disposto a distribuir os cobertores e parte daquelas roupas para algumas pessoas que surgiram à sua mente. Alguns cobertores foram entregues para várias pessoas que dormiam em algumas calçadas na região da rodoviária, e o saco de roupas ele levou para Rock, Renato e as garotas super poderosas.
Quando Herbert entrou no terreno de Rock, foi recebido com muito fervo, alegria e batata doce assada na fogueira. A família de Rock já foi abrindo o saco de roupas, experimentando algumas gravatas, calças e camisas, num fervo coletivo, risos e brincadeiras, pois estavam finos e chiques. Foi uma alegria só, afinal, nem sempre aquela família estava no radar de outras pessoas, para lhes prover ajuda e atenção.
Herbert deixou a casa de Rock com uma sensação de afago no coração, pois sabia o que era passar necessidade sozinho, e como era bom ser ajudado por outras pessoas que lhe queriam bem.
Rock e sua família continuaram a serem visitados pela equipe da redução de danos e sempre mandavam notícias para Herbert de como estava a vida. Algumas vezes, Rock, quando estava pelo centro da cidade, visitava Herbert em seu local de trabalho. E a vida foi seguindo seu rumo, e o tempo foi passando na Cidade Feitiço. Cidade que um dia salvou Herbert com bom emprego, fonte de conhecimento, uma linda família adotiva, uma sogra fofa, amigos e um grande amor.
Depois de um certo tempo, Herbert encontrou Rock no centro da cidade, num restaurante onde Renato estava almoçando com Rock. Na verdade, foram eles que viram Herbert, que era meio lesado e nem sempre reconhecia algumas pessoas que mudavam muito de aparência. E, realmente, Rock e Renato estavam muito mudados. Herbert, sem se fazer de rogado, já foi levando seu prato de comida, garfo, faca e o copo de suco de laranja e foi se juntar ao casal.
Rock Hudson estava pleno, tranquilo levemente maquiado e cheio de vontade de contar as novidades. Ele disse que estava morando com Renato Russo na Vila Motta e as suas amigas de jornada tinham mudado de cidade. Falou das mudanças em sua vida, que o primeiro aluguel foi pago com o dinheiro que juntou dos artesanatos, algumas doações e da venda daquelas roupas doadas pela amiga Cida Lemos, que na verdade foi a maior parte do arrecadado. Rock e seu amor conseguiram, com todo o dinheiro levantado, pagar três meses de aluguel. E, naquele dia, a prosa se prolongou por um longo tempo, pois todos tinham muito assunto e vontade de ficar juntos.
Herbert, Rock e Renato, saíram do restaurante e foram caminhando pela Rua Brasil, em direção à Avenida São Domingos, onde pararam num banco de rua. Rock pediu para falar de outra novidade que o tinha deixado muito feliz, mas que não falou no restaurante porque precisava de um lugar mais protegido. Ele disse a Herbert que foi até o serviço de aids do hospital para iniciar o tratamento do HIV/aids, aquele que num passado distante não quis começar. Falou que no atendimento com a psicóloga, ficou surpreso porque no seu antigo prontuário tinha somente um resultado negativo de um teste de HIV. A data da testagem batia com a data em ele foi traído pelo ex-marido, que na sequência foi fazer o teste, mas não retornou para pegar o resultado, pois tinha “encanado” que estava com aids.
Foi este teste não entregue, que somado à traição, gerou a neurose que acompanhou Rock por todos aqueles anos de rua. Um pensamento neurótico forjado numa falsa crença de um resultado positivo para o HIV. Rock confessou que quando soube daquele resultado foi invadido por um misto de alívio, raiva e perplexidade. Alívio pelo resultado, raiva por ter se martirizado tanto por algo que não era real e perplexidade porque tinha feito uma associação entre a traição do ex-marido e a sua infeção pelo HIV, que na verdade uma coisa não tinha nada a ver com a outra, mas, que no fundo da sua alma, também foi preconceituoso por ter achado que o rapaz que foi o pivô da traição, tinha HIV. Enfim, muitas emoções para Herbert, Rock e Renato vivenciarem num mesmo dia e num mesmo banco.
Rock disse a Herbert que fez outros testes de HIV, mas todos tiveram resultado negativos; mas, a cada testagem realizada foi refletindo sobre por quê criou aquela neurose, aquele sofrimento e aquela falta de paz de espírito.
A prosa avançou um pouco mais e todos se despediram num afago de certezas bem vindas sobre o que nós fazemos de nossas vidas. Rock Hudson e Renato Russo seguiram seus caminhos, se agarrando em suas vitórias e fortalezas, pois já conheciam o abismo do desespero. E nosso amigo Herbert Daniel foi para sua casa, pois naquela noite já tinha marcado com a artista Fabiana de Oliveira e seu amor Jair Affonso uma noitada deliciosa na Porcada no Km 7 da Cidade Feitiço.
“Berggasse, 19”, por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Jean Carlos de Oliveira Dantas, é psicólogo.
Compartilhe nas redes sociais: