A colunista, em 1993, grávida de Pedro, seu primeiro filho (Arquivo Pessoal)

Por Vanessa Campos

E lá venho eu, com minhas reminiscências quando penso no Dia das Mães.
A memória passeia pelo tempo em que fui mãe de primeira viagem em 1993 no Rio de Janeiro. Daquelas com 21 anos, jovens mamães recém-casadas, que trabalham e fazem faculdade. Ansiosa e no estilo “... Vamos viver tudo que há pra viver, vamos nos permitir” (o som do Lulu Santos sempre tão atual)! E era assim que eu vivia cada dia, como se fosse o último, com uma pressa de ser feliz, com uma pressa de realizar coisas que eu temia que muito em breve, não teria tempo suficiente. Uma gravidez não planejada, até porque meu diagnóstico de AIDS era tão recente, mas que foi muito bem-vinda.

Tão jovem e cheia de tantos medos. Tão jovem e vivenciando uma sentença de morte. Tão jovem e encarando o futuro como algo inatingível e por isso o futuro tinha que ser o agora.
Era um dormir e acordar e não querer pensar nos medos. Trabalhar com os fatos do momento e um não perder a esperança no dia seguinte porque era o mais longe que podia ousar enxergar. Um dia de cada vez... e, antes de dormir, orar mentalmente para que minha criança não nascesse com HIV.
Não havia abertura para diálogo sobre o meu HIV com o pai do meu filho. Era como se houvesse um pacto de que esse assunto só era permitido nas consultas com o infectologista e com o obstetra, que ele me acompanhava religiosamente. Então, meus medos transitavam na minha cabeça e somente dentro dela permaneciam porque não havia com quem falar sobre eles. Isso me faz lembrar e compreender Cazuza, em “Eu queria ter uma bomba”:

Solidão a dois de dia
Faz calor, depois faz frio
Você diz: já foi, e eu concordo contigo
Você sai de perto, eu penso em suicídio
Mas no fundo eu nem ligo

Então, pra mim, ser mãe sempre foi uma aposta gigantesca na vida. Aposta no sonho da menina que queria ter uma família grande.
Como são caros os sonhos! Como também podem nos custar tantas renúncias e desafios!
E sempre foi assim a minha experiência de engravidar por 3 vezes sendo uma mulher vivendo com HIV/AIDS.
É duro depender e ficar vulnerabilizada nas mãos de profissionais de saúde que prometeram cuidar da vida mas violam os direitos de quem não se enquadra nos padrões de uma sociedade que julga e condena quem é diferente.
A decisão de gestar me fez experimentar a discriminação como algo palpável. Tipo:

“Você enlouqueceu. Não devia engravidar. Melhor fazer um aborto!” (Falou o infectologista quando mostrei meu exame confirmando a gravidez. Rio de Janeiro, 1993)!

“Ela vai ficar separada das outras mulheres no pré-parto, e a prioridade é das mães de família.” (Me deixaram isolada e abandonada no pré-parto, de 1 hora da madrugada até 17h, sem nenhum atendimento médico. Manaus, 1999)

“Por que essa mulher está pegando na criança sem luvas?!” (Gritou a pediatra, no meio da enfermaria da maternidade, quando viu a minha cunhada trocando a fralda da minha filha. Manaus, 2001).

“Leve esta garrafa de água sanitária, e quando você sair do banheiro, desinfete todos os locais que você utilizar.” (Me orientou a enfermeira da maternidade quando fui tomar banho. Manaus, 2001).

Criança filha de mãe HIV+ (Escrito, pela assistente social da maternidade, com caneta vermelha e em letras garrafais na caderneta de saúde da minha criança. Manaus, 2001).

Gravidez após gravidez, foi violência em cima de violência.
Mas isso não me tirou a alegria de ter minhas crias nos braços, de sorrir e ser feliz!

O que mais me entristece é saber que ainda hoje, muitas mulheres vivendo com HIV/AIDS ainda passam por estas mesmas violências obstétricas. Pressão psicológica para não engravidarem, laqueaduras não consentidas, discriminação.
Lutamos judicialmente em 2018 e conseguimos que o Ministério da Saúde retirasse o CID Z21 (criança exposta ao HIV) da caderneta de saúde da gestante e também da caderneta de saúde da criança. E continuamos na luta contra a exposição de sorologia HIV+ nos diversos serviços de saúde.
Mais recentemente, no dia 19 de abril, o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde publicou a Portaria SCTIE Nº 13/2021, que instituiu o implante subdérmico de etonogestrel como estratégia de prevenção da gravidez indesejada através do Sistema Único de Saúde (SUS) para mulheres que vivem em situação de rua; com HIV/AIDS que fazem uso de dolutegravir; que fazem uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, condicionado à criação de um programa que deve ser feito público no prazo de 180 dias.
Percebem por quê estamos nos manifestando totalmente contra esta portaria que escolheu estes grupos específicos de mulheres para não gerarem filhos?!
Nós sabemos o quanto o controle de nossos corpos é uma rotina dentro dos serviços de saúde. Sabemos que somos uma população indesejada nesta sociedade hipócrita.
Sofremos diariamente com a discriminação e não vamos silenciar diante de mais uma estratégia eugenista, racista, discriminatória e estigmatizante, engendrada por um governo fascista.
A disponibilidade do implante subdérmico contraceptivo é muito bem-vinda, só não queremos que ela seja utilizada como instrumento compulsório de esterilização de grupos específicos de mulheres que já são estigmatizadas e discriminadas na sociedade. A maioria já tem dificuldade de acesso ao SUS e, muitas delas, não são informadas adequadamente sobre os diversos métodos disponíveis. Por isso, a probabilidade é de que, ao chegarem no serviço de saúde, sejam pressionadas a aderirem ao implante. Após o procedimento, a pergunta que fica é se elas conseguirão se livrar do método quando quiserem. Sempre dependerão de um profissional da área para retirar e, quando a gente depende de um serviço de saúde que nos discrimina, temos mesmo que ficar com muito pé atrás e não aceitar dessa forma. #AcessoUniversalSim #EugeniaNão!

Sonho com o dia em que nós, mulheres e pessoas com útero, possamos exercer nossos direitos sexuais e direitos reprodutivos com todo suporte necessário, seja do Estado ou da sociedade em geral.

Nunca me arrependi de ter minhas crianças. Elas sempre foram um sonho acalentado no meu coração e jamais permiti que este sonho fosse roubado de mim. O amor por elas me deu forças para lutar pela vida, para nunca desistir. Esse amor que me fez ter coragem de abrir a boca e falar abertamente sobre minhas vHIVências e jamais deixar de acreditar que vale a pena se amar, vale a pena se cuidar, e aderir ao tratamento é fundamental para ter qualidade de vida e seguir em frente.

Estamos enfrentando a pandemia do novo coronavírus e a morte de mais de 412.000 pessoas no Brasil nos mostra que o plano genocida deste governo segue feroz. Estar viva depois de três infecções com covid-19 me faz ter mais vontade de lutar.
Paulo Gustavo disse que rir é um ato de resistência. Ele deixou esta mensagem com seu talento brilhante, então, que a gente consiga encontrar motivos para sorrir em meio a tantas lutas e dores.
Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos que vamos vHIVer!
Feliz Dia das Mães!

“Cor de Rosa-choque”, por Vanessa Campos
Vanessa Campos, 49 anos, mulher, mãe, vive com HIV/AIDS há 31 anos. É representante estadual da RNP+ Amazonas, secretária nacional de informação e comunicação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+ Brasil) e idealizadora da fanpage Soroposidhiva.


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