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Por Ronaldo Hallal[1]Nêmora Barcellos[2] e Álvaro Ramos[3]

A pandemia segue em expansão no Brasil. Atingimos mais de 3 mil mortes diárias no País. Entre 15 e 21 de março, cerca de 60 mil pessoas morreram em todo mundo devido a covid-19; 15 mil mortos eram brasileiros. Isso significa que, no período, o Brasil contribuiu para 25% das mortes no planeta, ainda que o País concentre somente 2,7% da população mundial.

Um ano passou desde os primeiros casos registrados no Brasil. Ao longo desse tempo o conhecimento científico e as experiências internacionais mostraram que as medidas comprovadas para controlar a pandemia são as estratégias não farmacológicas – utilização correta de máscaras efetivas, higienização das mãos, capacidade de testagem e rastreamento, distanciamento e isolamento social – combinadas à ampla cobertura vacinal.

Entretanto, tornou-se rotina a divulgação de imagens e mesmo discursos que desestimulam essas medidas, até mesmo por parte de autoridades cujo trabalho deveria ser proteger a população. De forma geral, essa descrença se articula com a relativização dos danos decorrentes da pandemia e com a proposição de tratamentos farmacológicos ineficazes já avaliados pelo método científico apropriado. Além de incentivar o descrédito à ciência, tais atitudes aumentaram a transmissão da covid-19, contribuindo para o colapso do sistema de saúde.

Apesar dos diversos alertas apresentados por epidemiologistas, sanitaristas e pela comunidade científica (por exemplo, em “Mensagem de Manaus a Porto Alegre”, em janeiro de 2021), especialmente a partir do início deste ano, em nenhum momento o governo do estado do Rio Grande do Sul e principalmente o do município de Porto Alegre propuseram ações que propiciassem aumento suficiente dos níveis de isolamento para conter a pandemia. Pelo contrário, mesmo diante do colapso do sistema de saúde e da ameaça de esgotar a disponibilidade de recursos humanos, medicamentos e procedimentos básicos para a sobrevivência de pacientes críticos com covid-19, o prefeito da capital segue pressionando para ampliar a circulação de pessoas, adotando medicamentos ineficazes, divulgando que o comércio estaria “imune” à transmissão, contrapondo economia e saúde e ampliando o colapso social decorrente da pandemia.

A covid-19 é uma “sindemia”, já que exacerba o impacto de outros agravos e aprofunda as desigualdades sociais; acarreta o adoecimento de famílias inteiras, a perda da qualidade vida e a redução da expectativa de vida. No estado já são mais de 800 mil casos, duplicação de mortes em 10 dias, cerca de 300 mortes diárias, espera por leitos de UTI e quase 20 mil mortes acumuladas – elementos que indicam o colapso social.

A resposta foi ambígua, não apenas pela inexistência de coordenação nacional, mas pela influência de setores empresariais nos governos locais – explicitado pelo governador do estado e pelo prefeito de Porto Alegre, em detrimento de recomendações técnicas e evidências científicas. Efetivamente, representações de trabalhadores do comércio e do transporte público, profissionais de saúde e hospitais não foram considerados com a mesma força que representantes empresariais na tomada de decisão.

A capacidade instalada no estado para identificar e monitorar a expansão de variantes é muito baixa. O SARS-CoV-2 gera variantes na presença de altas taxas de replicação. Desde dezembro do ano passado, a variante P.1 já estava circulando na região metropolitana de Porto Alegre. Estudo genômico indicou que a P.1 foi responsável por 24 de 27 casos de covid-19 em pacientes hospitalizados em fevereiro deste ano. Tal tendência de expansão vem sendo observada no território nacional. Diante da maior transmissibilidade da variante será preciso realizar Vigilância Molecular e potencializar a combinação das medidas de prevenção, principalmente com altos níveis de isolamento social.

Somente no dia 27 de fevereiro de 2021, um ano após o aparecimento da covid-19 no estado, o governo adotou, tardiamente, a “bandeira preta”, medida insuficiente para enfrentar a magnitude do cenário de colapso. Monitoramento das redes de telefonia móvel mostra que a adoção dos protocolos previstos na “bandeira preta” não ocasionou mudança significativa no nível de isolamento social. Em fevereiro, a média de isolamento social foi de 37% e, desde o início da vigência da bandeira preta permanece em 39%, portanto muito inferior aos 60-70% necessários para desacelerar a epidemia.

Lockdown
Países que estavam em risco de esgotamento do sistema de saúde ou até mesmo vivendo o seu colapso intensificaram o distanciamento e o isolamento social adotando lockdown. No início de março de 2020, a Itália apresentava marcada expansão da epidemia, refletida na taxa média de contágio da doença (Rt) de 2.0, que representa que cada 100 pessoas infectadas transmitem para outras 200 pessoas; após 3 semanas de lockdown, a Rt declinou para 0.77 e permaneceu inferior a 1.0 em 84% do país, representando desaceleração de 62% na transmissão da doença.

Na mesma época, no estado norte-americano de Delaware, a combinação de medidas como a determinação para a população permanecer em casa, a fiscalização do uso de máscaras, a testagem e o rastreamento de contatos, reduziu o número de hospitalizações em 88% e a mortalidade em 100%.

A França, diante do risco da 2ª onda, promoveu, em outubro do ano passado, toque de recolher noturno que atingiu cerca de 28% da população, teve duração de 8 semanas e ocasionou redução na taxa de transmissão comunitária e de hospitalizações. Desde o último dia 20, aquele país decretou novo período de isolamento máximo em diversas regiões. O Reino Unido recentemente desacelerou a circulação da variante britânica e o número de casos e mortes, com adoção de lockdown durante 6 semanas. Atualmente o país tem menos de 30 mortes diárias.

Uma revisão recente analisou dados de 37 países europeus, mostrando que a adoção precoce de lockdown foi associada a menor mortalidade pela covid-19, comparando-se a países que o adotaram tardiamente. Nessa mesma análise, a Suécia – cujo governo reconheceu que deveria ter adotado medidas mais intensas de isolamento – teve maior mortalidade comparativamente a países que adotaram lockdown.

No Brasil, recentemente, o município de Araraquara (SP) reduziu em 50% os novos casos com a adoção de lockdown de 10 dias, e o município de Ribeirão Preto (SP) acaba de declarar também o isolamento extremo.

O termo lockdown remete a “confinamento”, uma imagem negativa em nosso imaginário. Entretanto, no contexto da pandemia, essa medida evita mortes e reduz prejuízos à economia quando se comparam países que a adotaram com aqueles que não intervieram na circulação de pessoas, mantendo assim baixas taxas de isolamento social. Já existem evidências de que controlar a circulação viral com maior intensidade e evitar a crise sanitária são ações que proporcionam recuperação econômica mais rápida.

Doentes com covid-19 grave demandam longa permanência sob terapia intensiva, com custos diários que podem variar de R$ 3.300 até R$ 30 mil em algumas situações. Assim, a hospitalização em UTI de um único paciente, por apenas um dia, com custo presumido de R$ 6 mil, possibilitaria o isolamento para 10 famílias de baixa renda durante um mês inteiro, considerando um auxílio emergencial de R$ 600,00. Nesse sentido, o fornecimento de recursos como máscaras adequadas, renda, cestas básicas e apoio a empresas provavelmente seja uma intervenção custo-efetiva em relação aos custos decorrentes do tratamento das complicações da doença.

É surpreendente que, diante do colapso do sistema de saúde e da expansão da nova linhagem P1, o governo do estado tenha decidido pelo retorno da cogestão e a consequente reabertura das atividades não essenciais no estado. Segundo o governo estadual, a Rt teria caído para 1.4, que significa que cada 100 pessoas transmitem para outras 140 pessoas e representa expansão da pandemia – é internacionalmente aceito que, para o retorno a atividades presenciais, seria preciso que a Rt permanecesse < 0.7 durante 2 a 3 semanas, de modo a refletir na contenção da pandemia.

Uma modelagem matemática indica que, caso o Rio Grande do Sul adotasse lockdown com isolamento social de 60% – níveis atingidos em março do ano passado – durante um período de 14 dias, mais de 400 mil novas transmissões seriam prevenidas e pelo menos 8 mil mortes seriam evitadas. Em Porto Alegre seriam prevenidos mais de 45.000 casos, e pelo menos 900 mortes seriam evitadas.

Simultaneamente à intensificação do isolamento social será preciso desenvolver a combinação das estratégias não farmacológicas, com produção e distribuição de máscaras adequadas, campanhas de prevenção, ampliação de testagem com PCR e rastreamento de casos. Sobretudo, será preciso criar condições objetivas para lockdown durante pelo menos 2 semanas. Tais condições incluem a garantia de renda básica universal e o desenvolvimento de estratégias de proteção, como por exemplo linhas de crédito, especialmente para micro, pequenas e médias empresas.

Não é aceitável apenas aguardar o avanço da cobertura vacinal, como a “bala mágica”, pois sua efetividade diminui diante da ampla circulação viral. Além disso, a exposição à doença e o risco de morte são desiguais na sociedade, e o colapso da saúde precisa ser imediatamente enfrentado. Como mencionado, aqueles que tomam decisões não produziram as condições necessárias para o lockdown. Paradoxalmente, alegam que não é possível implementá-lo devido à ausência de condições objetivas.

É preciso enfrentar a hipocrisia do ciclo retórico e pressionar por renda em caráter emergencial, tendo como prioridade prevenir mortes em lugar de naturalizar o caos e atribuir sua causa apenas à nova linhagem que hoje circula. Na realidade a nova linhagem surgiu pela ausência de contenção da circulação viral, e sua expansão está entre as mais fortes razões para determinar lockdown. Diversos países mostram que é possível enfrentar a covid-19, e para isso será preciso desenvolver políticas que protejam a vida e amenizem a carga social da doença, propiciando assim a recuperação econômica.

 


[1] Médico Infectologista, Mestre em Ciências Médicas pela UFRGS

[2] Médica Internista, Programa de Saúde Coletiva da UNISINOS

[3] Programa de Pós Graduação em Matemática/UFRGS

“Hallal et al”, por Ronaldo Hallal
Ronaldo Hallal é médico, infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.


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