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Por Ronaldo Hallal[1] e Nêmora Barcellos[2]

A chegada do final do ano de 2020 marca o momento mais crítico da pandemia de covid-19 no Brasil. Justamente no período que antecede festas de final de ano e férias e que se caracteriza pelos encontros e reuniões, a pandemia apresenta preocupantes sinais de expansão, colocando em risco a capacidade do sistema de saúde em atender o acúmulo de demandas trazidas pela doença e pelo “represamento” de outros agravos.

No Brasil, foram notificados aproximadamente 7 milhões de casos e mais de 180 mil mortes. No Rio Grande do Sul (RS), já temos mais de 350 mil casos confirmados e quase 8 mil mortos. Vale lembrar que, devido à baixa cobertura de testagem e ao emprego de testes rápidos em uma parte dos casos suspeitos – capazes de estimar o cenário epidemiológico, mas pouco úteis no manejo da infecção –, o tamanho da epidemia é subestimado: projeções sugerem que temos mais de 8 vezes em relação ao total de notificações.

Entretanto, as lacunas na resposta à pandemia antecedem seu aparecimento e influenciam o enfrentamento: nos últimos anos o financiamento dos serviços no SUS, incluindo seus laboratórios públicos, não se expandiu na mesma medida que a demanda de saúde da população. Gestões em todo território nacional, governo do estado do RS e do município de Porto Alegre são exemplos claros, imprimiram medidas de fragilização das políticas públicas de saúde e desvalorização – até mesmo confronto – com servidores públicos. Não causa surpresa, portanto, a dificuldade em realizar testagem para covid-19 com resultado em tempo oportuno, a baixa cobertura de testagem com emprego de PCR e as frágeis ações de rastreamento de casos e contatos.

Nas primeiras semanas de outubro, foram notificados diariamente no RS cerca de 300 casos novos de covid-19, e 20% das pessoas testadas tiveram o teste de PCR positivo, mantendo com isso os níveis elevados de transmissão comunitária e hospitalizações ao longo do ano. A situação se agravou a partir do final de novembro, até que na metade de dezembro aproximadamente 4 mil pessoas foram diagnosticadas diariamente com covid-19 e cerca de 45% dos resultados de testes de PCR são positivos, mostrando marcada elevação da transmissão comunitária e na carga da doença na rede de saúde.

O aumento da transmissão pressiona o sistema de saúde, levando ao rápido aumento da ocupação de leitos hospitalares e de unidades de terapia intensiva (UTI) e à redução da capacidade do sistema, agravado pelo adoecimento de profissionais de saúde. A faixa etária mais jovem, que mais se expôs desde setembro, antecipa a transmissão para pessoas acima de 60 anos e portadores de doenças crônicas, o que aumentará ainda mais o impacto no sistema de saúde público e privado.

O período que antecedeu o recrudescimento da epidemia se caracterizou por mensagens de governantes e formadores de opinião, de que a epidemia estaria sob controle e a sociedade “cansada” do isolamento, com discursos sinérgicos em relação à “flexibilização” das medidas de isolamento anteriormente adotadas. Mensagens como “fique em casa” foram substituídas por “estamos adotando todos os protocolos”. Por outro lado, diversas pessoas e setores da sociedade manifestam o desejo de manter o isolamento, como no caso de boa parte da comunidade escolar.

O governo federal frequentemente se manifesta em oposição ao isolamento social, incentivou aglomerações, desestimulou o uso de máscaras, desprezou a gravidade da doença, promoveu tratamentos ineficazes e deixou de distribuir mais de 6 milhões de testes diagnósticos de PCR armazenados, muitos deles com a validade quase esgotada. O mais trágico é que correspondem ao dobro dos testes realizados ao longo de todo ano.

Em relação à imunização, o governo federal cometeu um erro estratégico ao escolher apenas uma das opções de vacinas em desenvolvimento, rechaçou a vacina produzida pelo Instituto Butantã por razões ideológicas e eleitorais e provocou conflito com o seu comitê de experts. Pressionado, apresentou – sem utilizar máscaras – um plano nacional sem cronograma de vacinação, sem justificativa de cálculo de necessidades e, sem razões técnicas, acabou por excluir populações vulneráveis como população privada de liberdade, comunidades quilombolas e moradores de favelas. Pior ainda: não teve capacidade de adquirir seringas para administração das vacinas e está anunciando uma descabida necessidade de Termo de Consentimento para que a população tenha acesso a vacina, estabelecendo obstáculos à imunização.

Gradativamente ao longo do ano houve retorno do futebol em todo país, e mesmo a testagem antes das partidas não impediu surtos entre jogadores. No RS, negociações políticas envolvendo prefeituras e o governo do estado reduziram artificialmente o gradiente de risco expresso pelas bandeiras no mapa estadual. Essa é uma das razões que indicam que este modelo tem limites até mesmo para estimar o esgotamento do acesso oportuno a leitos hospitalares e de terapia intensiva. Como a testagem foi “removida do mapa” para beneficiar municípios que notificaram poucos casos devido à baixa cobertura de testagem, o modelo identifica com atraso “hot spots” de transmissão, o que impede intervenções de prevenção e diagnóstico em tempo oportuno. O retorno às atividades do comércio, indústrias, escolas, bares, restaurantes e a campanha eleitoral completaram o cenário: o resultado foi a grande circulação de pessoas nas ruas e, consequentemente, a expansão da epidemia.

Ainda que se estejam “adotando todos os protocolos”, como repete o discurso oficial, a doença está se propagando. É muito comum a circulação de pessoas nas ruas sem máscaras e até mesmo aglomerações sem que ocorra qualquer intervenção de agentes públicos. São escassas as ações de educação em saúde ou comunicação, não existe regulamentação, fornecimento ou controle do uso de máscaras em espaços públicos.

Os gestores transferem a responsabilidade da prevenção para a população e a culpabiliza pela expansão da epidemia, mesmo sem ter fornecido condições objetivas para o isolamento, implementação e monitoramento de estratégias de prevenção para todos, inclusive nas periferias das cidades. É como afirmar que a responsabilidade pela prevenção da transmissão do vírus da Aids é exclusiva do indivíduo, desconsiderando a necessidade de políticas de prevenção e de comunicação, a importância do combate à homofobia e ao preconceito e os determinantes sociais da doença.

Desde os primeiros casos de covid-19, o Brasil concentrou uma resposta muito restrita a urgência e emergência, hospitais e unidades de terapia intensiva, ainda que os casos graves correspondam a cerca de 15% dos sintomáticos. Embora o cuidado adequado seja essencial para reduzir a mortalidade, cuidar somente dos casos graves é insuficiente para conter a epidemia. 

A partir da constituição do Sistema Único de Saúde (SUS) na década de 1980, busca-se universalidade no acesso e integralidade nas ações em saúde no Brasil. Um modelo de atenção em rede, com fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS), vinha sendo fomentado, mas infelizmente essas estruturas de base territorial e sustentadas em agentes comunitários de saúde foram subutilizadas na resposta a covid-19. Sua capilaridade em favelas e comunidades de baixa renda poderia ampliar o acesso ao diagnóstico, o rastreamento de contatos e sintomáticos, estabelecendo uma resposta integrada do sistema de saúde. Uma das lições desta pandemia é mostrar a necessidade de sistemas de saúde universais e hierarquizados e a necessidade de ampliar o financiamento, fortalecendo o SUS.  

A APS é estratégica para reduzir a influência das desigualdades nos desfechos da pandemia no Brasil. Regiões com marcada pobreza e pouco acesso a recursos, como a região Amazônica, apresentaram a maior velocidade de expansão da epidemia no Brasil. No RS, o coeficiente de mortalidade pela covid-19 ajustado para população é maior entre não brancos, e a letalidade hospitalar é mais que o dobro entre pessoas com baixa escolaridade em relação àquelas que chegaram ao nível superior. Covid-19 talvez seja o maior exemplo de uma “Sindemia”: possui sinergia com outras doenças acarretando piora nos desfechos nas doenças crônicas, na tuberculose ou na Aids e aprofundando as desigualdades sociais. 

O sistema de saúde do RS está entrando em colapso. A capacidade de testagem é menor que a velocidade de expansão da epidemia, nossa taxa de transmissão comunitária é elevada e a ocupação de leitos de UTI é superior a 90%. Nas últimas 2 semanas houve duplicação do número de casos e de óbitos, mostrando que as estratégias não estão sendo suficientes na contenção à epidemia.

Somente a priorização da resposta à epidemia e a adoção de medidas sociais e sanitárias robustas – incluindo elevados níveis de diminuição da circulação, como observado entre abril e junho – com uma resposta integrada em todos os níveis de atenção à saúde, reduzirão o avanço da doença e das mortes. É preciso diminuir a circulação nas cidades, com altos níveis de isolamento, e para isso a população precisará de recursos para enfrentar a pandemia.

Ações de enfrentamento nas comunidades e nas periferias devem incluir a expansão da testagem com PCR e possibilitar alternativas de isolamento para pessoas infectadas pelo novo coronavírus. Para isso deveriam ser oferecidos hospitais de campanha ou estruturas públicas já existentes e adaptadas para a quarentena de assintomáticos ou casos com sintomas leves.

É preciso recuperar as mensagens para que a população “fique em casa”, já que a política baseada na “adoção de todos os protocolos” não evitou a aceleração da epidemia. Claramente é necessário um consenso para estruturar a resposta intersetorial à epidemia, incluindo governos, setores econômicos e organizações da sociedade civil.

Não há justificativa para atingir 200 mil mortes que teremos no país até o final deste mês ou para chegarmos a 10 mil mortes no RS até o início do próximo ano. Seria preciso que os governos resistissem às pressões econômicas e buscassem na equidade e no valor à vida as suas maiores prioridades, sentidos que deveriam impulsionar a gestão pública, especialmente em tempos de horror e caos aprofundados pela pandemia. Não se pode “naturalizar” a transmissão da doença, suas sequelas, as mortes e o sofrimento de uma sociedade que já estava agonizando.

 

[1] Médico Infectologista, Mestre em Ciências Médicas pela UFRGS.

[2] Médica Internista, Programa de Saúde Coletiva da UNISINOS.

“Hallal et al”, por Ronaldo Hallal
Ronaldo Hallal é médico, infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.


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