Dia Internacional da Prostituta: da memória ao presente

Card de 2003 do GAPA-RS (Arquivo pessoal)

Assim como o primeiro sutiã, não se esquece o primeiro 2 de Junho brasileiro. Em 2003, o Núcleo de Ação e Estudos da Prostituição (NAESP), nascido no Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS do Rio Grande do Sul (GAPA-RS) produziu um card – ou postcard, como se chamava à época – primeiro material de comunicação em alusão a data que circulou no Brasil.

Em 2002, o Beijo da Rua, jornal em formato tabloide da ONG Davida “fez um registro contando a história da data”, lembra Carla Almeida, coordenadora do GAPA-RS e, à época, do Naesp. O texto publicado no Beijo foi reproduzido no verso do cartão-postal do GAPA-RS [imagem abaixo].

“O material foi lançado no dia 2 de junho durante um coquetel realizado numa praça da Avenida Farrapos – espaço de prostituição histórico de Porto Alegre", conta. Autoridades, associações de moradores e personalidades da capital gaúcha estiveram presentes. “As prostitutas cis e trans compartilharam com os convidados textos, poesias e shows! A situação mais inusitada aconteceu enquanto montávamos a estrutura para o coquetel na praça e uma moradora do bairro se aproximou questionando se o evento era aberto a comunidade, prontamente dissemos que sim e ela quis saber o motivo da comemoração! As prostitutas, por ter um dia que marque a luta por direitos e visibilidade social das prostitutas é fundamental no enfrentamento dos estigmas que estão presentes na prostituição!”

De profissional do sexo a prostituta
Roberto Domingues era chamado carinhosamente de Robertinho pela amiga, a prostituta Gabriela Leite, líder nacional da Rede Brasileira de Prostitutas que no final dos primeiros anos do Século XXI – 2003-2004 – levantou-se contra o Brasil aceitar algumas dezenas de  – cerca de 40 –  milhões de dólares da agência norte-americana USAID para que programas brasileiros de prevenção ao HIV/aids, e para o financiamento de ações de prevenção das ONG representativas das populações-chave no movimento social brasileiro de aids. Mas havia uma condição: a de que trabalhassem a partir da perspectiva da política do ABC, na sigla em inglês, que se resume a abstinência [não só] sexual, fidelidade e, se tiver que fazer sexo, use camisinha. Mas, a rejeição dos dólares gringos não era exatamente pelo ABC de Bush – não para certa maioria, porque o jeitinho brasileiro disso dava conta  –, mas pelo fato das ONG não poderem trabalhar a questão do empoderamento de grupos organizados por e para prostitutas – como a ONG Davida e a Rede Brasileira de Prostitutas, por exemplo.

Por anos Roberto Domingues, ou Robertinho, foi assessor técnico da Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), que no card do GAPA-RS assinou Rede Brasileira de Profissionais do Sexo (PS). “Naquela época o movimento buscava ampliar a sua base e, devido ao estigma, o termo prostituta sempre foi bastante desqualificado; PS era mais palatável entre as mulheres”, relembra. “Mas, como Gabriela sempre dizia, o movimento somente se fortaleceria se encarasse seus fantasmas. E a palavra prostituta sempre foi um de seus maiores e mais feios fantasmas que precisava ser enfrentado”, contextualiza Domingues.

Para ele “é interessante notar que o termo ‘profissional do sexo’ rapidamente passou a ser utilizado em sua sigla PS, o que escondia cada vez mais os destinatários e protagonistas da luta”, argumenta.

No entanto, sobre o estranhamento da assinatura da Rede como “profissionais do sexo”, Robertinho conta que “em 2004, após o planejamento estratégico da Rede optou-se pela adoção do termo para marcar uma posição política do movimento. A rede passa a ser Rede Brasileira de Prostitutas”.

Ele sublinha que “esse embate sobre o nome, não da Rede, mas das mulheres, não foi superado, mas é a orientação das mulheres organizadas, embora haja absoluto respeito àquelas que não se sentem confortáveis e ainda prefiram usar trabalhadoras sexuais”.

Robertinho acompanhou Gabriela Leite a partir de 1989, “e desde então a segui no movimento”. Segundo conta, sua relação com a Rede “sempre foi muito orgânica, mas sempre tive clareza do papel enquanto consultor técnico e afetivo”.

Gabriela Leite
Quando Gabriela Leite começou a gritar contra o Brasil submeter sua então exitosa política de prevenção às IST/HIV/aids ao ABC de Bush em troca de algumas dezenas de milhões de dólares, ela já era a coordenadora geral da ONG Davida e uma das principais lideranças da Rede Brasileira de Prostitutas, seu lugar orgânico de fala. Mas, não estavam em risco apenas as ações de e para prostitutas. Também, senão principalmente, a troca de seringas usadas por novas, como uma das mais poderosas estratégias de redução de danos à saúde de usuárixs de drogas injetáveis teria de ser abolida.

Pressionado não apenas pela Rede Brasileira de Prostituas, então a única rede da categoria no País, o governo brasileiro não aceitou as dezenas de milhares de dólares dos EUA. Mas o recurso financeiro entrou no Brasil através de uma ONG internacional, a PACT Brasil. Mas essa é outra história.

A história de Gabriela virou a autobiografia “Filha, mãe, avó e puta”. E, ainda que a palavra prostituta fosse a que Gabriela defendia politicamente em oposição ao termo “profissional do sexo”, geralmente ela dizia puta, palavra com que verdadeiramente sentia-se a vontade. Paulistana, Gabriela Leite foi fundadora e presidente da ONG Davida, do Rio de Janeiro, e idealizadora da Daspu, confecção criada para produzir um look ‘puta ativista’ e cujo nome foi inspirado na Daslu, frequentada pelas “luluzinhas” – como eram chamadas as clientes socialites da sofisticada boutique paulista. Gabriela foi levada por um câncer em 11 de outubro de 2011, no Rio de Janeiro, depois de meses e meses de um tratamento bastante pesado.

Puta Day Pulsando
Em seu primeiro 2 de junho, Dia Internacional da Prostituta, Saúde Pulsando marca devidamente a data. Ao jornalista Flavio Lenz, autor do texto que o Naesp / GAPA-RS reproduz no verso do card, foi pedida a manchete de hoje: o 2 de junho na Alemanha, onde vive. Como o país mais rico da Europa tem equacionado as questões da prostituição em tempos de pandemia do novo coronavírus? Ele reporta que algumas eficientes estratégias são acionadas para inibir algumas iniciativas de deputados alemães e os contra-ataques organizados das prostitutas. Flavio é jornalista com passagem pelos maiores veículos de imprensa do Rio e foi criador, editor e repórter do Beijo da Rua, jornal da ONG Davida.

E no Brasil? Em tempos de Covid-19, de tentativas de acesso ao Auxílio Emergencial e sua a quem não necessariamente precisa e tem direito a seu acesso, damos um giro de 180 graus para aterrissar no Brasil do governo Bolsonaro. Para falar de prostituição, Saúde Pulsando estreia neste Dia Internacional da Prostituta a coluna Vozes da Prostituição, escrita por Elisiane Pasini, que em sua première brinda leitorxs com o artigo O que temos para comemorar no Dia Internacional das Prostitutas?

Doutora em Antropologia pela Unicamp e ativista feminista, Elisiane Pasini foi consultora no antigo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), do Ministério da Saúde, de 2012 a 2018. Mais recentemente, foi Perita Júnior Local do Projeto “Apoio aos Diálogos Setoriais UE-Brasil – Fase IV”, coordenado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) e pela União Europeia (UE), no ano de 2019.

Atualmente vive em Marselha, na França. Lis, como é chamada carinhosamente pelas pessoas mais próximas, aceitou escrever a coluna rotativa sobre o tema desde que pudesse dar voz às trabalhadoras e aos trabalhadores sexuais. Por isso Vozes da Prostituição. Com ela espera-se trazer novamente ao debate a voz das prostitutas e dos prostitutos, visibilizar o trabalho sexual e, por menor que seja, cumprir a função social do jornalismo. Para provocar o ranço e a raiva dos hipócritas e para o prazer e deleite do leitor e da leitora deste site.

Para estrear Vozes da Prostituição no Dia Internacional da Prostituta, excepcionalmente a coluna sobre Hepatites, de Andrea Domanico, será publicada na próxima semana.

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