A idade humana Children vector created by macrovector - www.freepik.com
“Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”.
Friedrich Nietzsche, in Para além do bem e do mal
Por Jean Carlos de Oliveira Dantas
As transformações do mundo são acompanhadas pelas janelas de nossa alma, que faz reverberar para dentro da nossa existência um combo de novidades, velharias com novas roupagens e velharias velhas.
No campo da nossa existência, vou me deter no corpo humano, que é, ao mesmo tempo, testemunha e protagonista tanto do tempo histórico quanto depositário das consequências físicas das escolhas exercidas pela nossa alma. Um tempo que nos molda ao seu modo, nos forçando a nos adaptarmos ao naturalmente esperado para nossa idade, de acordo com as prerrogativas impostas mais pela nossa sociedade de consumo, do que por nós mesmos.
O corpo, que traz na sua geografia interna uma cadeia de órgãos, nervos e ossos, onde vivem uma série de seres vivos que fazem a vida acontecer. Por vezes, esse corpo recebe novos habitantes durante a sua existência, que geralmente nos fazem mais mal do que bem, como o HIV.
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um desses agentes externos, que por vários motivos acaba recebendo passe livre para se instalar em nossos corpos indo morar no plasma e demais santuários.
Pensando bem, nosso corpo é um santuário mesmo, mas no caso do saber HIV/AIDS, trata-se de locais onde existem vários linfócitos infectados com pouca penetração dos antirretrovirais, mas isso é assunto para outro artigo.
O HIV é um morador que muda para o nosso corpo estabelecendo uma comunicação full time para a vida eterna. Em tempos, esta comunicação é mais observacional do que propriamente interacional, mas se comunicar é preciso, como já filosofava Chacrinha, nosso velho guerreiro: “Quem não se comunica, se trumbica.” Esta máxima é verdade concreta, principalmente na relação entre um corpo habitado por um vírus atento às nossas fraquezas e potencialidades.
Uma pessoa que se infecta com o HIV aprende logo cedo que terá um novo ser dentro de si impondo uma nova lógica para a sua vida. Um novo diálogo constante com você mesmo(a). Um novo viver, que deve ser baseado numa reorganização da sua vida. Um novo planejamento estratégico, porque sendo estratégico, ele é realizado por quem faz a coisa acontecer, isto é: planeja quem faz, e neste caso, planeja quem vive.
A pessoa cria um planejamento para ajustar-se as demandas apresentadas pelo vírus, isto é, para continuar a comunicação profícua e sadia com este hóspede, que passa pela reorganização da rotina como: vivenciar o luto pela infecção; a tomada de medicamentos diários e eternos; a administração dos efeitos colaterais do coquetel e, psíquicos do resultado positivo; a decisão de expor ou não a sua sorologia para família, amores e amigos; enfim, ajeitar a cabeça para não pirar e viver dignamente a doença crônica, na medida do possível.
A pessoa passa a exercer um novo papel na sua vida – a de pessoa vivendo com HIV/AIDS, que mais cedo ou mais tarde vai lhe impor um novo olhar sobre a sua humanidade. Assim sendo, é fundamental viver com dignidade todas as fases da vida, inclusive quando o acumulo de idades se apresentar em seu corpo e alma, isto é, quando a pessoa se torna idosa.
Uma pessoa idosa vivendo com HIV/AIDS deve levar em consideração, além dos anos apresentados na sua certidão de nascimento aqueles creditados a sua idade orgânica causada pela agressividade do vírus. Vários estudos apontam que a ação do HIV provoca alterações no DNA resultando no aceleramento do envelhecimento celular. Assim sendo, uma pessoa vivendo com HIV/AIDS envelhece por fora e por dentro.
Envelhecer com HIV/AIDS é diferente para cada um, pois somos diversos em nossos universos, apesar de termos um lugar comum que nos conecta – o HIV.
Somos seres humanos com diversidades presentes em nossos corpos e almas recheados de alegrias, dores e sentimentos presentes no avançar das idades, que exige novos enfrentamentos como por exemplo: a administração da menopausa para uma mulher cis vivendo com HIV/AIDS; a hormonioterapia de longo prazo para travestis, mulheres e homens trans, que além desta medicação utilizam os antirretrovirais; as complicações relacionadas aos outros agravos como cânceres e demais doenças comuns numa terceira idade precoce devido ao envelhecimento de um organismo habitado pelo HIV.
Além das doenças do corpo, temos um emaranhado de outras possibilidades do surgimento de outras “dores da alma”, que tanto cresceram nos últimos anos de nossa agitada humanidade, como por exemplo a solidão.
A solidão já é uma realidade para muitos(as) de nós, principalmente aqueles(as) que residem nas grandes cidades do mundo, pois quanto mais gente divide o espaço urbano, mais solidão se encontra entre as pessoas. Esta máxima ficou muito evidente para mim, porque ao longo dos meus 52 anos e 11 meses vivi em cidades de pequeno, médio e grande porte, onde observei a resposta de cada pessoa e coletivos aos vários fatores geradores da solidão, como por exemplo: o afastamento gradual de familiares, amigos e amores. Percebi, que mesmo vivendo numa megalópole como São Paulo, com cerca de 12 milhões de habitantes, percebo que temos solidões mais sós entre os residentes da região central e bairros classe média do que entre os bairros do subúrbio. Acredito que a solidariedade é mais viva entre aqueles(as) que têm menos, pois sabem o que esta realidade lhes causa, porque a dor do outro está na casa ao lado, muitas vezes dividida por uma parede comum.
A solidão dos(as) idosos(as) é uma triste realidade para uma boa parte desta população, que acredito se agravar mais quando tem um HIV habitando em seus corpos marcados pelo tempo. Para algumas pessoas, o HIV foi o motivo do distanciamento familiar, porque ele mostrou a fragilidade de relações humanas construídas mais à base de interesse escusos, e menos no amor, afeto e solidariedade. Aqui, temos que pensar em mulheres, homens cis, gays, bissexuais, travestis, mulheres e homens trans, que pela liberdade de ser e viver tiveram que se afastar de seus familiares devido a discriminação sofrida, que se potencializou quando o HIV invadiu suas vidas.
O envelhecer com HIV/AIDS nos provoca a ser mais cuidados com nosso corpo e alma, cuidando de suas demandas na medida do possível com medicamentos, atividades físicas, boa alimentação e paz no coração advinda de uma relação espiritual ou com aquilo que você acredita ser a resposta para as suas indagações. Além disso, quando se exerce a solidariedade baseada no afeto e, no amor a você e os(as) nossos(as) semelhantes que vivem ou não com HIV podemos criar um rol de atitudes que colaboram para reduzir o impacto da solidão em nossas vidas.
O envelhecer nos aprimora a sabedoria e o entendimento acerca da nossa existência, que podem auxiliar nos vários processos de adaptabilidade que esta fase da vida nos impõe. Então, saber envelhecer é preciso para que não naufraguemos próximo ao porto final da nossa viagem pela vida.
“Berggasse, 19”, por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Jean Carlos de Oliveira Dantas, é psicólogo.
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