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Por Jacqueline Rocha Côrtes

Datas, comemorações, dia disso, daquilo... é tanta celebração, tanta alusão, tantas discussões e debates, mobilizações, passeatas, palestras, pesquisas, gráficos, números e, agora, LIVES! Ufa, que agenda é essa? Ou melhor, que agendas são essas?

Neste mês de novembro tivemos no dia 20, o Dia Internacional da Memória Trans, do inglês TDoR, Transgender Day of Remembrance. Também, no dia 20, o Dia Nacional da Consciência Negra. Ainda em novembro, no dia 25, foi celebrado o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher, em homenagem ao sacrifício de Las Mariposas (para marcar o assassinato das irmãs Mirabal na República Dominicana). Promovida pela ONU e pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome e iniciada em 25 de novembro de 1991, sob a coordenação do Centro de Liderança Global da Mulher, a Campanha Mundial pelos Direitos Humanos das Mulheres propõe os 16 Dias de Ativismo contra a Violência contra as Mulheres.

Em dezembro, no dia primeiro (1º), será então celebrado globalmente o dia Mundial de Luta contra a AIDS, pandemia que assolou o planeta e se faz presente até os dias de hoje, maltratando, isolando, ferindo, estigmatizando, discriminando, adoecendo pessoas, escancarando a pobreza, a miséria, a negligência das autoridades, a ausência do poder público em políticas de resgate da dignidade humana como moradia, trabalho, educação, lazer, segurança; mas, paradoxalmente, para nosso alento e esperança, a AIDS também continua unindo pessoas, somando forças, construindo pontes, promovendo conhecimento, aprendizado e superação; continua nos ensinando. Em épocas de pandemia, como a de hoje, a COVID-19, a experiência obtida outrora, especialmente pelas pessoas que vivenciaram a AIDS em seu auge avassalador, a sociedade civil organizada em especial, por meio das ONGs e instituições, as comunidades diversas, as pessoas vivendo com HIV, dentre elas travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais, prostitutas, moradores de rua, usuários de drogas, meninas e mulheres cis, homens hetero, cisgêneros, idosos, pessoas pobres e ricas, de classe média, artistas; pelas autoridades sanitárias médicas e médicos e profissionais de saúde em geral e, pelos governos em suas três esferas, também de outrora, que fizeram seu papel, a sua lição de casa pelo povo (e não são todos, podemos nomeá-los, se preciso for) e pelos organismos internacionais, dentre os quais salientamos a ONU e fundações, e sem deixar de fora, a valiosa ciência e as indústrias farmacêuticas amigáveis, sine qua non na resposta. Essas experiências acumuladas e vividas são hoje o pilar do enfrentamento à COVID-19.

E no dia 10 do mesmo mês, a história lembra e celebra o Dia Internacional dos Direitos Humanos, resgatando e promovendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 por diversos representantes políticos, jurídicos e culturais.

Mas hoje eu quero falar de uma data especial, do dia de viver a vida. Quero falar da agenda humana, da agenda de todo dia das pessoas, de gente igual a gente. Quero falar das dificuldades que enfrentamos para nos mantermos vivas, vivos e vives. Das tormentas que nos desafiam a cada instante. Das quase um milhão de pessoas que vivem com HIV no Brasil, das mais de 35 milhões que se foram da terra pela AIDS, quero falar das mulheres transexuais, travestis e outras pessoas transgênero que somam por volta de 36,9% de infecção pelo HIV em nosso país (DCCI/SVS/MS) e que têm 12 vezes mais de chance de infecção pelo HIV quando comparada a pessoas cisgênero, e com uma expectativa de vida que não ultrapassa os 35 anos de idade. Quero falar das mais de 130 pessoas trans assassinadas em 2020, mantendo o triste e cruel primeiro lugar no ranking mundial do país que mais mata pessoas trans, por transfobia. Sabia que mais de 90% de travestis e transexuais no Brasil já passaram por situações de discriminação por sua identidade de gênero? Quero lembrar que uma pessoa LGBTQI é morta a cada 26 horas. Quero falar dos/das mais de 120 pessoas pretas assassinadas diariamente no Brasil, por racismo, por ódio; falo também das mais de 1861 mulheres assassinadas até outubro de 2020, sendo 648 tipificadas como feminicídio. De um estupro a cada 8 minutos, 8 minutos, percebem?

Contudo, não é só de dor que vive a humanidade. Também quero falar sobre passear, correr, brincar, andar livremente; namorar, amar, rir, conversar, frequentar restaurantes, teatros, praças, cinemas; fazer arte e cultura. Quero falar sobre acesso à saúde digna e respeitosa, resoluta, para todas, todos e todes, universal e integral. Quero falar sobre escolas amigáveis, ambientes gostosos de estar, que recebem a diversidade com naturalidade e humanidade. Que convivem juntas, sim, juntas. Pessoas LGBTQI+, pessoas pretas, indígenas, com deficiência. Pessoas com crenças diferentes, com opiniões e perspectivas diferentes, pessoas pobres, mais ou menos, ricas, pessoas de diversos cheiros, cores e sabores. Pessoas, gente, raça humana. Quero falar sobre dias melhores, sobre as próximas comemorações dessas e tantas outras datas em nosso calendário formal e social.

Utopia será? Não. Este mês de novembro também mostrou e provou que mudar de mentalidade é possível, que as pessoas podem evoluir, aprender e dar o seu melhor. As urnas elegeram 30 pessoas trans no país, mais de 40 quilombolas, pessoas com deficiência; nove mil (16%) mulheres vereadoras e um aumento de 12,7% de prefeitas eleitas no primeiro turno no país. Ainda é pouco, mas a onda mostra que o povo brasileiro está exausto de mentiras, de colarinhos brancos, de madames sinhás, de empresários machistas e de governos fascistas, fundamentalistas e anti-gente. A luta é árdua, constante e severa. Não podemos piscar os olhos, mas podemos celebrar sim, não um dia, uma data, mas uma LUZ que aparece lá do outro lado do túnel e que anuncia que dias justos virão, que o bem-estar coletivo vai chegar, e que quem alimenta a crueldade e a perversidade também vai se beneficiar de uma sociedade mais justa, humanitária e de governos mais honestos e inclusivos. Sabem por quê? Porque a diversidade vai estar presente todo dia, porque a diferença impera, ela é obra da natureza; é só ela que nos torna iguais.

“Livre e iguais em dignidade e direitos.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos)

Fontes: Ministério da Saúde; ANTRA; UNIVERSA; UNAIDS/ONU; Transgender Europe; Generonumero.midia

“TransitHIVa no Ar”, por Jacqueline Rocha Côrtes
Jacqueline Rocha Côrtes é uma mulher de 60 anos, idosa (risos), professora aposentada, casada, mãe, esposa, irmã, filha, amiga, companheira, colega, ativista, alegre, triste, fraca, forte, brincalhona, séria, destemida, disponível e solícita, impaciente, suave e firme, decidida, compreensiva, e brava. Bem-sucedida em meus sonhos e desejos, sofrida, pisada, humilhada, agredida, respeitada, acalentada, desejada, querida, acarinhada e amada. Muito amada. Agradecida e grata. Sou uma mulher, e dentre estas características minhas, também sou uma transexual redesignada e vivo com HIV e AIDS há 26 anos! E tenho um filme documentário, longa-metragem, que conta a história da minha vida. ‘MEU NOME É JACQUE’. Tá, meu bem?


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