Por Paulo Giacomini

Eu refletia sobre as eleições municipais do próximo domingo, 15 de novembro, dia da Proclamação da República – um golpe militar, diga-se de passagem –, quando parei, assustado com aquele “E aí?” que eu tinha acabado de ouvir num tom estridente, pra lá de conhecido. Sem titubear, olhei pro lado e lá estava ela, a Macaquita, desaparecida há meses, com os pelos brilhando, um sorriso nos dentes e no olhar. Ela estava visivelmente feliz. Sem titubear, exclamei:

“Bicha – sim, a macaca é um animal do sexo feminino, uma fêmea, uma bicha –, onde você esteve este tempo todo?”

“Tá pensando nas eleições, é?”, perguntou ela, desconsiderando meu interesse pessoal pelo seu paradeiro.

“Estava, como você sabe? Ah, esqueci que você é meu alterego e sabe de tudo. Estava por onde, está sendo bem-tratada, bicha? A pele tá booooa...”, disse eu, deixando uma insinuante e proposital reticência.

“Você pensava que desde 1996 não via tantas candidaturas de ativistas e militantes de movimentos sociais próximos do espectro de luta que você atuou nos últimos 25 anos e bla, bla, bla...”, ela desdenhou, provando que sabe mesmo tudo o que se passa comigo.

“Em todas as eleições há candidaturas de lideranças dos movimentos sociais”, respondeu ela. “Foi em 1996 que foram postuladas uma série de candidaturas LGBT – que naquela época tinha outra nomenclatura, outra sigla; algo como GLT ou GLS – às câmaras de vereadorxs pelo Brasil”, ela lembrou, como se quisesse me ensinar o que eu ensinei a ela.

“Ainda que houvesse candidaturas isoladas, alheias ao movimento, elas representaram uma novidade para além das aberrações que compram espaços em partidos políticos para concorrer às eleições municipais, estaduais ou nacionais. Eram candidaturas comprometidas com o movimento, traziam sua agenda e seus temas”, comparei e contextualizei.

“Em 1996 fiz uma reportagem com nove candidatas e candidatos LGBT pra editoria de Política (hoje ‘poder’) da Folha de S. Paulo (na foto). Outros jornais já haviam publicado a matéria, mas a Folha não. Eu propus a reportagem ao editor e ele disse que eu tinha uma página. A matéria ficou meses na gaveta por causa do assassinato do PC Farias, tesoureiro da campanha do Fernando Collor.” A Macaquita quase roncava quando voltei das lembranças de quase um jubileu de prata. Fiquei olhando-a por um momento de introspecção quase infinita quando a bicha acordou com meu silêncio.

“Agora, tantxs candidatxs de movimentos sociais mais próximos do seu espectro, não é?”, alfinetou ela num tom que era um mix de desafio e veneno. “O que toda essa gente fez nesses movimentos sociais, hein?”, insistiu enquanto mantinha uma pose de quem está lixando as unhas, de quem sabe qual será a sua resposta. Como eu não respondia, ela acrescentou:

“Fico passada de ver tanta gente que nunca fez p**** nenhuma, que nos eventos da gestão ou do movimento social entra mudx e sai caladx, ou que traz relatos de 'causos' dos anos 1980-90 como se estes tivessem acontecido na semana passada. Gente que não tem trabalho na ponta, com as pessoas diretamente afetadas, nem no controle social das políticas. Gente que se compromete com a mesma facilidade com que se descompromete, mas continua onde está: numa representaçãozinha qualquer. Candidaturas de ‘merda’, como diria sua amiga Gabriela Leite”, vomitou ela, numa golfada só. “E presta atenção, que tem candidatx vivendo com HIV que não quer assinar pauta do movimento”, acrescentou limpando o veneno da boca.

Atônito, não consegui abrir a boca com a revelação e a clareza da Macaquita. E, imediatamente lembrei da campanha de Gabriela, pelo PV, quando se candidatou a deputada federal em 2010. Teve o apoio de Gabeira e de outrxs deputadxs federais e candidatxs a deputadx estadual. Mas não recebeu um tostão do partido pra campanha. Não tinha material, a equipe era voluntária e não tinha experiência com campanhas eleitorais. No entanto, era uma candidatura íntegra, honesta. Não tenho dúvidas de que se fosse eleita Gabriela lutaria, na Câmara dos Deputados, pela regularização da profissão de trabalhadorx sexual. Não duvido nada que ela não conseguisse.

“Ano passado eu disse de uma candidatura que determinada situação foi arranjada para legitimar uma atual postulação à vereança de uma cidade brasileira. Negaram, mas eu estava certo”, retruquei à provocação.

Tem gente séria dos movimentos sociais se candidatando. Tem gente séria que já trabalhou e aprovou pelo menos duas leis para todo o Brasil no campo do HIV/aids e não postulou candidatura. Tenho cá com meus botões se três ou quatro pessoas se candidatassem e eu votasse no município da candidatura, eu votaria nelas. Não vou citar nomes pra não ficar feio – pra mim e para as pessoas.

Uma dessas pessoas, particularmente, se fosse candidata eu votaria nela de olhos fechados. Simplesmente porque dela eu conheço parte de suas qualidades e parte de seus defeitos. Digo parte porque ninguém conhece ninguém por inteiro.

Mas, a questão não é sobre quem não está candidatx, mas quem não sabe quais são os princípios do SUS e quer defender uma população que não pode perder o SUS. Tudo é uma questão de oportunidade. Ou de oportunismo. Mas este, todo mundo vê.

“Por falar em oportunidade, aonde a senhora estava este tempo todo, dona Macaquita?”, insisti na pergunta.

“Aonde estou, você quer saber. Eu só vim aqui dizer pra você que seu tempo de sonho já passou. Ainda mais sonhar com gente. É perda de tempo. Toma um copo de leite, se atira da janela e cai na real”, vociferou ela, como se tivesse a receita da racionalidade. “Encontrei o amor da minha vida. Este vai ser eterno”, acrescentou, como se fosse uma princesa.

“Não sabia que você também tinha problemas de relacionamento.”

“Problemas quem têm são vocês, humanos. Eu vivo livre. Inté!”

“Diário da Macaquita”, por Paulo Giacomini
Jornalista, começou criando o jornal da empresa em que trabalhava. Da faculdade foi direto pra Coluna Gay da Revista da Folha, da Folha de S.Paulo, onde colaborou com Poder, Esporte, Turismo e Ilustrada. Trabalhou na G Magazine, fez cobertura de carnaval pra Coluna do Gugu e ajudou a criar OFuxico. No movimento de aids, escreveu, editou, fotografou, produziu e deu forma a diversas publicações. Fez especialização e mestrado em Informação e Comunicação em Saúde no Icict/Fiocruz e foi Secretário de Informação e Comunicação da RNP+BRASIL. Vive com HIV/AIDS desde 1984. É diretor de Saúde Pulsando.


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