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Por Jean Carlos de Oliveira Dantas

 

“... A imortalidade me preenchia e eu sentia que algo de maravilhoso, a grande transformação em minha vida, estava prestes a acontecer...”
(Beto Volpe, in Morte e Vida Posithiva)

 

Na Berggasse, 19, Freud toma seu vinho diurno com sua parceira intelectual Lou Andreas-Salomé, numa tarde de primavera dialogando sobre as dores que geram o mal-estar da civilização; porém, o encontro se encerra com o por sol pois o mestre tem um novo encontro psicanalítico a espera na antessala.   

Ao abrir a porta do seu setting para o novo encontro entre o arqueólogo de almas e um jovem senhor que vive com HIV/aids há mais de 30 anos, o psicanalista lançou no ar uma pergunta profunda para seu cliente: Qual é o lugar do afeto em sua vida?

O nobre senhor pensou, passou as mãos em seus cabelos acinzentados, olhou para o teto a procura de algo que sabia que existia, mas que naquele momento não conseguia identificar aonde estava. Talvez, a dificuldade do nosso herói era admitir que o afeto estava em si, sem que isso maculasse a sua crueza masculina, valente e por vezes bruta, pois foi moldado assim, pelos anos de ativismo lutando para que o Brasil tivesse uma política pública para o HIV/aids, baseada em fatos, pessoas e direitos. Assim como não podemos esquecer dos fatores familiares e sociais, que também colaboraram para a formação do seu jeito sui generis de ser e estar no mundo.  

A consulta acabou e nosso nobre senhor saiu correndo pelas ruas da cidade de Amarcord, pois tinha deixado Princesa Isabel, sua gata, sem as suas uvas javanesas, comida predileta que custava os olhos da cara.

Chegando em casa, alimentou sua nobre cúmplice da vida solitária e sentou-se em sua cadeira de cana da Índia, que pertencera a sua mãe, para escutar Ravel a tocar seu Bolero na vitrola, e neste momento põe-se a questionar em suas reminiscências, o lugar do afeto em suas ações de pessoa humana e ativista:

- Eu me lembro que naquele dia corrido, que orientei aquela pessoa, que veio até mim chorando porque chegou na unidade de saúde para passar em uma consulta e o profissional foi rude. Eu me lembro que estava com pressa e fiz uma orientação curta e direta, mas... será que naquele momento corrido eu coloquei meu afeto naquelas palavras e sinceridades?

- E naquele outro dia, em que escrevi uma resposta cobrando a realização de uma promessa política do SUS para as pessoas vivendo com HIV/aids. Ao relatar o caso para o meu destinatário, fui pensando nas pessoas, e... será que nesse momento eu deixei meu afeto fluir ou somente fui levado pela razão?

- Será que eu posso ser racional e afetivo ao mesmo tempo?

- Será que ser afetivo pode me deixar menos racional?

- Será que ser afetivo pode me deixar frágil, pois eu não sei lidar com estas coisas de sentimentos?

As horas foram passando e nosso amigo foi cada vez mais se permitindo abrir as suas amarras racionais que tanto impediam seu afeto de voar de sua alma agitada. 

Podemos pensar que o afeto é o sentimento de ternura por uma pessoa, animal, familiar e tantas outras coisas que despertam a nossa sensibilidade para o amor. Assim sendo, a pessoa humana, não é isenta de afeto, por mais que a sociedade insista em catalogá-la em algumas categorias que buscam desumanizá-las, mas a sua humanidade continua presente, apesar dessa violência.

E nesta história, o nosso ativista sênior percebeu que é o afeto que uniu todos/as/es que se juntaram na luta contra a aids, pois o amor está sempre presente na busca por algo que é comum e bom para todos/as/es. Lutar para todos/as/es é uma opção regulada pelo afeto, pois nos força a sair do nosso individualismo para pensar no bem comum. A defesa da vida, que é sua práxis, deveria ser também a do outro. Por isso é prioritária para ele por mais que não seja para o outro, pois o outro, por muitas vezes, não tem essa dimensão de humanidade. E não tem porque ele pode estar isento de afeto devido ao seu individualismo, e/ou cegueira social, e/ou impossibilitado de dar esse passo, porque não pode, não consegue ou por impedimento de outra ordem.

Estas e outras reflexões foram se revezando nos pensamentos do nosso ativista, que culminou com um novo diálogo consigo mesmo:  

- O/a ativista é um ser coletivo, plural, radical, áspero – quando necessário – e afetivo, por mais que uns/umas não demonstrem ser;

- Acredito que não tem como pensar no bem comum, na vida da outra pessoa, que nem sabe que aquele/a ativista existe, mas que será beneficiada, quando ele/a mostrar a cara na TV identificando-se como uma pessoa vivendo com HIV/aids. Quando um/a ativista dá visibilidade ao seu status sorológico positivo para o HIV, não tem como não ser orientado/a pelo afeto.

- O afeto do/a ativista age nas ações locais para incidir nas estratégias globais sensíveis à causa do HIV/aids e demais bandeiras políticas que se acumulam em sua práxis ao longo de sua história. 

Ao final da conversa com sua consciência, acompanhada atentamente por Princesa Isabel, nosso senhor percebeu que a vitrola parou de tocar o clássico. Um som a menos naquela casa, que também era isenta de flores e cactos, mas que acabara de receber um novo colorido de afeto.

O dia ficou mais leve, pois a leveza que o afeto produzia na alma do nosso Dom Quixote, consubstanciava em seu corpo, suaves movimentos de levezas nunca pensados.

É fato que o peso da tensão gerada pela luta de todo/a ativista e/ou profissional do SUS, que atua em prol do direito à saúde, à vida, e por vezes a uma morte digna, é carregada de sentimentos e dores que fazem pesar a alma, mas que tem no afeto a força para retroalimentar a sua sede por um mundo melhor para todos, todas e todes nós e, neste caso em especial, às pessoas que vivem com HIV/aids.     

O afeto é a mola mestra da humanidade!

“Berggasse, 19”, por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Jean Carlos de Oliveira Dantas, é psicólogo.


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