A coordenadora geral da Gestos, Alessandra Nilo
Por Alessandra Nilo
Quando a epidemia da AIDS eclodiu em 1981, a infecção pelo HIV crescia exponencialmente e pouco se sabia a seu respeito – o que abriu espaço para a desinformação e, consequentemente, a estigmatização das pessoas que viviam com o vírus. À medida que os anos se passavam, a falta de tratamento e a discriminação somada às desigualdades sociais e iniquidades sistêmicas no Brasil e no mundo matavam pessoas diariamente. No início dos anos 1990, a sociedade civil que vivia e convivia com o HIV/AIDS se mostrava cada vez mais inquieta, principalmente frente à constante perda de pessoas queridas. Era preciso reagir e foi esse sentimento que me levou, junto com a assistente social Silvia Dantas, o sociólogo, Acioli Neto e a também socióloga Márcia Andrade, a criarmos a Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, em 1993.
Naquela época, mais de 50% dos casos de AIDS do estado de Pernambuco se concentravam no Recife e o coeficiente de incidência já era o maior entre as capitais do Nordeste. Sabíamos que os desafios eram imensos e que tínhamos muito trabalho a fazer. Em nosso primeiro ano, com financiamento da Misereor, passamos a oferecer atendimento psicológico gratuito para pessoas vivendo com HIV/AIDS – serviço oferecido até hoje – e começamos a formar os/as primeiros/as multiplicadores/as de informação nas comunidades. Além disso, começamos a provocar a sociedade a pensar sobre o tema. No “nosso” primeiro de dezembro, por exemplo, fizemos uma intervenção urbana bem inusitada, colocando uma camisinha gigante, feita em parceria com a Período Fértil – marca de roupas que segue ativa – no mastro da Estação Central do Metrô do Recife.
Estávamos sempre na mídia e dois anos depois já tínhamos mais de 150 multiplicadores/as disseminando informações nas comunidades, escolas e serviços de saúde. Mas ainda não conseguíamos formar grupos regulares de pessoas vivendo com HIV porque a frequência de falecimentos ainda era alta, o que só mudou com a chegada do tratamento, acessível e universal, por causa do querido Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 1995, realizamos nosso primeiro projeto de comunicação, com apoio do então Programa Nacional de AIDS. O “Imagens e Aids” foi a primeira pesquisa qualitativa sobre as campanhas produzidas no Brasil e depois disso nunca mais paramos de pautar a centralidade da comunicação nas políticas nacionais. Neste mesmo ano iniciamos nossa assessoria jurídica gratuita para PVHA, serviço altamente especializado que, até hoje, segue sendo uma das referências no Brasil.
Em paralelo aos serviços que ofertamos (que também incluem assistência social e enfermagem) e aos projetos que desenvolvemos, desde o início as ações de advocacy foram parte essencial do nosso trabalho. A articulação com outras organizações da sociedade civil (OSC) nos permitiram uma intervenção forte nos níveis federal, estadual e municipal – e a partir dos anos 2000, também internacional –, que foi tijolo para o fortalecimento do movimento AIDS e para o desenvolvimento de uma resposta integral à epidemia. É emocionante ter sido parte de uma história que, através da cooperação entre Estado e sociedade civil, construiu uma resposta multisetorial que colocou o Brasil na vanguarda internacional da resposta à AIDS – posição que hoje a cada dia se fragiliza devido ao desmonte das políticas de direitos em curso, liderada pelo atual governo federal do Brasil.
São as lembranças boas, no entanto, e os resultados que a sociedade civil continua produzindo, que nos energizam para seguir adiante. Nós sabemos o que fazer e como responder ao HIV e esse contexto tão desafiador torna organizações como a Gestos ainda mais relevantes, e é esse espírito que alimenta nossa nova campanha de mobilização de recursos: Você Doa, a Gestos Mobiliza, a Sociedade Avança.
Talvez esteja na hora de começar a escrever um livro sobre esses 29 anos de resistência. Mas se eu pudesse resumir, diria que a Gestos é o resultado do encontro de muitas histórias, de muitas mãos que nunca se largaram e de muitas outras que se somaram e se somam, todos os dias, para juntas apoiar quem mais precisa de nós. Ontem pela manhã, celebrando nosso aniversário, um de nossos companheiros, Glaudston (Toni) Lima, psicólogo, comentou que a Gestos nasceu de um sonho coletivo por um mundo melhor. Acho que ele sintetizou tudo o que, muito emocionada, compartilho nesse artigo: acolher, dar esperança às pessoas em maior vulnerabilidade social e econômica, tratando-as com a dignidade que lhes é de direito, é o que nos move.
Por isso, a campanha que lançamos ontem – sim, também precisamos de apoio – é um convite para que mais pessoas possam sonhar conosco esse sonho. Como bem disse o querido Toni, as pessoas têm duas vidas: “a biológica e a que vale a pena ser vivida”. Mas para ser boa, tem que ser uma vida com direitos, com cidadania, com respeito. Então, nesse aniversário de 29 anos, além de agradecer todas as mensagens de parabéns, eu agradeço a todos os/as parceiros/as, à nossa equipe amada e incansável e a cada pessoa que nos ajuda a continuar fortalecendo direitos – humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais – e seguir construindo sociedades democráticas, pacíficas e igualitárias para, um dia, finalmente, superarmos a AIDS.
Muito obrigado a todes por partilharem esse caminho. Viva a Gestos e, principalmente, viva você também, que não tem medo de sonhar! Seguiremos juntes, vibrando e atuando por um mundo melhor.
(*) Alessandra Nilo é coordenadora geral da Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero
Artigo publicado originalmente no site da Gestos, em 27 de maio.
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