Lei que obriga o SUS a fornecer tratamento do HIV completa 25 anos

Dolutegravir, tenofovir e lamivudina, terapia inicial do tratamento do HIV no Brasil

Desde 2018 nenhum novo medicamento é incorporado ao PCDT

Por Paulo Giacomini

Se em 1990 o Brasil acompanhou a agonia de Cazuza, um dos ícones do rock nacional e ídolo de toda uma geração, em 1996 foi a luta pela vida de uma desconhecida que comoveu o País. Nair Brito vive com HIV há 30 anos. Mas, no início de 1996, “eu estava sem esperança”, conta ela.

Com 8 de CD4 e diversas infecções oportunistas, Nair ainda conseguiu participar da Conferência Internacional de Aids realizada de 7 a 12 de julho, em Vancouver, no Canadá. Foi lá que ela viu o cientista David Ho apresentar a terapia tríplice, “que no caso eram os antirretrovirais num esquema muito potente e as pessoas estavam sobrevivendo. Eu pensei que era minha última chance porque já não me restava mais nada”, relembra.

Nair conta que reuniu as forças que tinha e somou com as da advogada Áurea Abbade, que na época era presidente do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids, o GAPA, primeira ONG/aids da América Latina, fundada em 1985, “e partimos para uma ação judicial”.

“Nesse meio tempo entre a ação judicial e a minha vida por um fio, eu fui internada e soube da ação já muito debilitada. Tanto, que em 15 dias a liminar foi concedida. Mas eu infelizmente fui tomar o medicamento somente três meses depois, dada a gravidade do meu caso.”

Nair contou ao Saúde Pulsando que teve que esperar os três meses porque tomava tantos medicamentos que os médicos acharam melhor ela “esperar um pouco”. “Esse ‘esperar um pouco’ era qualquer coisa assim: ‘olha, não vai dar pra ela’. E eu pensei: bom, essa vitória vai garantir a vida pra muitos”, diz ela por áudio, com a voz embargada, parecendo que com os mesmos sentimentos de 25 anos atrás.

A Lei Sarney
No último dia da Conferência de Vancouver, em 12 julho de 1996, o senador José Sarney deixou a cadeira de presidente do Senado e ocupou a tribuna da casa para “comunicar” que naquele mesmo dia apresentaria um projeto de lei que considerava “da maior relevância para o nosso País”. Após ler integralmente o que hoje está no texto da lei, o ex-presidente da República disse que o mundo se deparava “com uma grande esperança para a solução da pandemia do HIV, doença que tem sido encarada como uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade, uma vez que ela associa o sentimento eterno do amor ao sentimento da morte”.

Em seu pronunciamento, Sarney não omitiu os altos custos dos medicamentos, mas, que não podia “acreditar que um país como o Brasil, de tão grandes riquezas, de fortunas particulares incluídas entre as maiores do mundo, não pode deixar de assumir a responsabilidade de oferecer condições de vida e esperança a todos aqueles que, neste instante, numa corrida contra o tempo, esperam que o Estado venha ao encontro de suas necessidades”. Sarney acreditava que “o País tem esse dever, que é mais do que um dever e um direito adquirido, é um dever de caridade, é um dever de solidariedade, é um dever de humanidade para com todos aqueles que veem, neste momento, a oportunidade de mais algum tempo de vida sobre a face da Terra.”

Para finalizar, o ex-presidente da República comunicou que iria procurar as lideranças do Senado “na tentativa de viabilizarmos urgentemente esse projeto, a fim de que todos aqueles que imploram por recursos, nas televisões e nos jornais, possam dispor de fonte do Estado para que tenham acesso a melhores dias e melhores condições de vida”.

Valdemar Alves era uma dessas pessoas que precisavam daqueles medicamentos que a imprensa logo chamou de “coquetel”. Para conseguir o medicamento invirase, ele escreveu à então primeira-dama, Ruth Cardoso, pedindo o medicamento. Sensibilizada, dona Ruth, que presidia o Programa Comunidade Solidária, do governo FHC, pediu o antirretroviral (ARV) ao fabricante.

A Roche, fabricante do invirase, atendeu ao pedido de dona Ruth Cardoso e encaminhou três frascos do ARV ao Hospital São Paulo. “Recebi um telegrama do Hospital São Paulo, comunicando da doação do laboratório, atendendo a solicitação da primeira-dama”, contou ele.

Consagração
O Projeto de Lei do senador José Sarney foi aprovado por unanimidade no Senado, lembrou o ativista Jorge Beloqui, do GIV – Grupo de Incentivo à Vida. Em 13 de novembro de 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei nº 9.313, conhecida na época por Lei Sarney. Em seu Art. 1º, a lei estabelece que “os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento”.

“Eu comecei a tomar medicamentos para aids em março de 1996. Eu comprei até junho, quando entrei no GAPA e também com um processo na Justiça. A 9313/96 não sei quando de fato começou a ser cumprida. Aqui no RS ainda entramos com ações na Justiça por um bom tempo”, lembra o vice-presidente do GAPA-RS, Carlos Duarte.

Assim como a conferência de Vancouver consagrou a terapia tríplice com ARV, assim também foram “com os exames de carga viral e CD4 para monitoramento. Inclusive, havia a expectativa de poder erradicar o HIV do organismo humano”, lembra Beloqui. Em janeiro e março de 1996, Santos e Campinas, respectivamente, começaram a fornecer inibidores de protease. “Em julho e nos meses seguintes houve várias ações judiciais para obtenção desta terapia tríplice pelo SUS, com sucesso. A sociedade estava muito sensível ao HIV/aids e as vitórias judiciais eram reflexo disso. Tudo foi ganho com base na Constituição de 1988”, conta o ativista. “Isto concretizou o acesso aos ARV no Brasil.”

“Acho que a lei foi um marco no acesso ao tratamento do HIV/aids e no sistema público de saúde”, avalia José Carlos Veloso, vice-presidente do GAPA à época. Para ele, “a partir da lei também foram possíveis as primeiras ações judiciais para acesso aos ARV no Brasil, dando início a uma política orçamentária para compra dos medicamentos tão essenciais na vida das pessoas vivendo com HIV/aids, avalia ele. “Mas é importante ressaltar que a lei apenas exemplifica o que a Constituição já garante ao povo brasileiro: acesso universal.”

Novos medicamentos
“Hoje estamos num outro processo, o de novas tecnologias que facilitam a adesão. Medicamentos injetáveis ou de doses reduzidas podem ser ferramentas bastante potentes não só na qualidade de vida das PVHA como para a prevenção ao HIV”, considera Veloso.

Os parágrafos primeiro e segundo do Art. 1º da Lei 9.313/1996 estabelecem a revisão anual do padrão de tratamentos. Naquela época havia regras para as pessoas com aids receberem o medicamento. Apenas pessoas notificadas com aids e com CD4 abaixo de 250 cel/mm3 de sangue tinham acesso. Ao ler a lei hoje, 25 anos depois, percebe-se o quanto o ex-presidente Sarney estava sensibilizado. Para “orientar a aquisição, o Ministério da Saúde “padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção [HIV] e da doença [aids]”.

O mais recente Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para o HIV/aids é de dezembro de 2018. “Há alguns anos que a revisão não acontece com esta periodicidade. Provavelmente teremos um novo Protocolo no ano próximo. Quando perguntado sobre o por quê desta demora no cumprimento da lei, um ex-Coordenador de IST-AIDS respondeu que ‘com a criação da Conitec, a tramitação mudou’. Na atualidade há medicamentos em pesquisa, e outros recentemente aprovados”, afirma Beloqui.

“Algo que acho que ajudaria na adesão seria o fornecimento de tratamentos em pílula única. Há várias combinações deste tipo no mundo há algum tempo”, informa o ativista e estudioso no tema de novas tecnologias de prevenção e tratamento do HIV/aids.

“Para minha surpresa e pela misericórdia de Deus eu sobrevivi”, diz Nair. “Hoje eu ainda sobrevivo e digo graças a Deus, em primeiro lugar, mas, também, graças a essa força do ativismo que homens e mulheres têm empreendido nesta jornada que traz tanta discriminação e tanta injustiça, e que ainda é pertinente nos nossos dias, dadas tantas indiferenças quanto às políticas de saúde. Então, eu tenho pra dizer pra quem hoje atravessa o rio caudaloso diante da aids, seja pelo preconceito, pela dificuldade de acesso a exames ou a medicamentos, que se junte com outros, que acredite que juntos nós somos mais fortes”, afirma ela, uma das fundadoras da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+) e também do Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas (MNCP).

“A vida é orgânica e termina. Enquanto a gente estiver transitando nesta peregrinação, que a gente construa caminhos mais equânimes, nos quais possamos trilhar”, finaliza.

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