Carolina Iara: “A vivência com HIV me possibilita pensar melhor nas necessidades das PVHA”

Destaque do Estadão com a Bancada Feminista eleita pelo PSoL

Aos 27 anos, Carolina Iara é a primeira co-vereadora vivendo com HIV/aids eleita para a Câmara Municipal de São Paulo. Travesti intersexo feminista socialista, Carolina é membra da Bancada Feminista, candidatura coletiva eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSoL), em São Paulo, com mais de 46 mil votos. Ativista dos movimentos sociais na área da saúde e dos direitos humanos, Carolina Iara de Oliveira é servidora pública do município de São Paulo, mestranda em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC, integrante ‘da coletiva’ Loka de Efavirenz, da Rede de Jovens+ de São Paulo e da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+).

Comprometida com as bandeiras de suas membras, a Bancada Feminista foi uma das candidaturas a assinar o Programa Mínimo elaborado pelo Movimento Paulistano de luta contra a Aids – Mopaids que ganhou a adesão de diversas candidaturas. Sobre aids, especificamente, ela pretende discutir a estrutura da política do município de São Paulo.

A Saúde Pulsando, a co-vereadora Carolina Iara - a mais alta na foto - concedeu uma entrevista coletiva, já que contêm perguntas de representantes de organizações e de ativistas do movimento social de luta contra a aids. Confira a coletiva a seguir.

 

Por Paulo Giacomini

 

Saúde Pulsando – O que foi esta campanha eleitoral, co-vereadora eleita Carolina Iara? Você esperava ser eleita? Como está sendo a repercussão desta eleição?

Carolina Iara – A campanha foi muito intensa e construída a muitas mãos, e com participação ativa dos movimentos sociais que são representados por cada uma de nós da Bancada Feminista, eu, Paula Nunes, Silvia Ferraro, Dafne Sena e Natalia Chaves. A totalidade das minhas inúmeras e intensas tarefas de campanha foram virtuais por eu ser mais vulnerável ao covid-19 por comorbidades além do HIV (sou asmática severa), mas as outras cocandidatas também fizeram uma campanha de rua muito intensa e grande, com os movimentos sociais. A campanha foi bonita, e se concretizou numa expressiva votação.

 

Alisson Barreto, representante da RNP+SP – O que você, como uma recém-empoderada mulher intersexo, pessoa vivendo com HIV/aids (PVHA), preta, pobre e periférica, sente ao chegar à Câmara dos Vereadores da principal cidade do País e como isso pode refletir para as populações que você representa?

Carolina Iara – É um misto de sentimentos de alegria, satisfação, gratidão pela confiança de milhares de pessoas, de estar construindo isso a tantas mãos num projeto coletivo. Mas também sinto um frio na barriga, por saber que terei um trabalho desafiador pelos próximos quatro anos na maior cidade do País, e que farei o máximo para honrar os mais de 46 mil votos que obtivemos.

 

“... farei o máximo para honrar os mais de 46 mil votos que obtivemos”.

 

Claudio Pereira, presidente do GIV – Como você entende que a visibilidade de pessoa vivendo com HIV e vereadora pode ajudar as demais PVHA?

Carolina Iara – Eu percebo que a visibilidade política de uma co-vereadora vivendo com HIV, e falando abertamente sobre isso na sociedade, pode comentar o debate em toda a sociedade para diminuição do estigma e da discriminação, além de possibilitar que esse debate esteja atrelado com os movimentos sociais históricos de luta contra AIDS, e que também se dê de uma forma crítica e política. Além disso, ter a vivência com HIV me possibilita pensar melhor nas necessidades das PVHA.

 

Eduardo Barbosa, coordenador do Centro de Referência e Defesa da Diversidade – De que forma a bancada feminista pensa em atuar diante das ações propostas pela gestão atual de políticas para a diversidade? Transcidadania, centros de cidadania, apoio à Parada, Largo do Arouche?

Carolina Iara – Nossa atuação como co-vereadoras pretende fomentar a luta por projetos de lei que ampliem esses serviços, como o transcidadania (que precisa ser transformado em lei municipal), expansão e consolidação dos centros de cidadania, colaborar no processo que pretende tornar o Largo do Arouche um patrimônio imaterial da cidade e das LGBTQIA+, com um viés de acesso a direitos e maior participação estatal com recursos e gestão. Na mesma esteira, também lutaremos para uma descentralização desses equipamentos públicos para os bairros periféricos, assim como atuaremos como co-vereadoras na fiscalização do Poder Executivo no fornecimento dos serviços já existentes.

 

Eduardo Barbosa, CRD – Qual a possibilidade e de que forma os movimentos sociais poderão participar do mandato e continuar a implementar suas ações?

Carolina Iara – Pretendemos fazer constantes audiências públicas, fóruns de debates, conselhos nos bairros (o que a gente pensa em chamar de mandata intinerante) criando assim uma periodicidade desses encontros onde a sociedade possa construir a mandata coletiva, trazendo proposições, denúncias etc. Nós pretendemos ser coletivas não só entre as titulares do mandato, mas também com a conexão com os movimentos sociais e os territórios.

 

Beto Volpe, escritor – Como você acha que será a relação entre a Bancada Feminista e os vereadores Fernando Holliday e Thammy Miranda?

Carolina Iara – Eu acho que com Thammy Miranda não terá tanto atrito, apesar de divergências políticas imensas que existem entre nós, mas até onde sei ele defende direitos democráticos e civis, o que já é uma ponte de diálogo. Holliday, por sua vez, tem um histórico de luta contra pautas históricas dos movimentos sociais, e com certeza pode ocorrer atritos mais inflamados com ele.

 

Jacqueline Rocha Côrtes, do MNCP – Carol, você se autodefine uma pessoa intersexo, travesti, preta e que vive com HIV. Vários fatores da sinergia de preconceitos se juntam. Pois bem, neste sentido, fica evidente e gritante a necessidade de uma abordagem ampla sobre a interseccionalidade e a transversalização das várias temáticas que permeiam essa interseccionalidade, neste caso aqui, o racismo, a lgbtifobia, a sorofobia, dentre outras. Ao mesmo tempo, você é graduada, acadêmica, produz conhecimentos e passou (e passa) por diversas violências. De que maneiras você pretende levar essas questões para a massa, esclarecer o povo, enfrentar ‘as cobras’ fundamentalistas e promover entendimento e respeito entre a coletividade?

Carolina Iara – Que pergunta complexa! Bem, eu penso que um projeto político-pedagógico é também um papel da mandata popular. Além de informar não só o que acontece na mandata, mas também no sentido de explicar o sistema político, as questões sociais envolvidas, também é função da mandata fomentar a educação popular. Um exemplo disso já é dado com a Mandata Quilombo de Érica Malunguinho, que já tem projetos em andamento para elucidar a população tanto pela internet, como nos territórios. Acredito que podemos adaptar isso à realidade da cidade de São Paulo e ao arcabouço da vereança, que é diferente de um mandato no legislativo estadual como o de Malunguinho.

 

“... ampliar Centros de Acolhida e determinar que as pessoas trans sejam recebidas nesses espaços segundo suas identidades de gênero”.

 

Saúde Pulsando – Ultimamente, temos visto mais travestis e transexuais morando nas ruas de São Paulo. Soube do caso de um casal gay que perdeu o emprego, foi morar na rua e teve de abandonar o tratamento do HIV. Que projetos você pode apresentar enquanto Bancada Feminista para tentar contribuir para uma sociedade mais justa para essas pessoas?

Carolina Iara – Nós defendemos política de moradia para todas, todos e todes. É necessário urgentemente pensar em reforma urbana e, por exemplo, desapropriar todos os imóveis ociosos e transformar em moradia popular e também em casas de acolhimento para quem está em maior vulnerabilidade. Esse é um dos projetos que temos, como o de também ampliar Centros de Acolhida e determinar que as pessoas trans sejam recebidas nesses espaços segundo suas identidades de gênero, para não acontecer como num caso que recebi de denúncia, em que uma mulher trans não foi aceita em Casas de acolhida para mulheres. Além disso, precisamos aumentar o número de consultórios na rua e a atuação do serviço social nessas situações específicas de tratamentos de comorbidades.

 

Saúde Pulsando – A mais recente conferência municipal de saúde de São Paulo, realizada em 2019, aprovou como proposta a implantação e implementação de mais um serviço de atendimento especializado na região central da cidade. Em janeiro, o prefeito Bruno Covas (PSDB), por decreto, quase extinguiu a Secretaria Municipal da Saúde. No entanto, transformou o Programa Municipal de DST/Aids em Coordenadoria de IST/Aids da Secretaria Municipal da Saúde. Como podemos fazer para que o município cumpra as deliberações da conferência de saúde?

Carolina Iara – O poder legislativo não pode executar políticas públicas, mas pode fiscalizar e criar leis. Nossa Mandata pretende se consolidar como um bastião de luta dos movimentos sociais para esse controle social ativo. E pretendemos colocar em discussão no plenário da Câmara a estrutura da Política de AIDS do município, formas de reverter os desmontes da gestão tucana.

 

“... pé na porta para enfrentamento com a extrema-direita e os desmontes do neoliberalismo”.

 

Saúde Pulsando – Já caiu a ficha que você é a primeira pessoa intersexo preta, pobre, periférica, mestranda em Ciências Sociais e vivendo com HIV publicamente vereadora de São Paulo e do Brasil? Como é isso para uma socialista feminista como você?

Carolina Iara – A ficha está caindo aos poucos. Tomei um susto quando me vi na capa do Estadão junto com as meninas da Bancada Feminista. Pensei em tudo o que passei na vida, as mutilações genitais impostas a pessoas intersexo, a vida na periferia, a vivência com o HIV e nos mais de dez anos de militância ativa que tenho em diversas áreas, e fiquei emocionada. E como socialista eu encaro como mais uma tarefa para consolidar mudanças na estrutura social e econômica, ser um ponto de apoio a essas lutas que vêm de longa data, de ser pé no barro na conexão com a população, e pé na porta para enfrentamento com a extrema-direita e os desmontes do neoliberalismo.

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