Junho, mês do orgulho LGBTQI+: O que a AIDS tem a ver com esse babado¿

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por Célio Golin

Historicamente as pandemias e epidemias marcam épocas, pois rompem com uma determinada “normalidade” social. E com a AIDS não foi diferente, pois seu surgimento trouxe consequências nos mais diferentes aspectos políticos e sociais, com uma particularidade que a diferenciou de outras epidemias, pois a transmissão do vírus veio muito fortemente ligada às práticas que envolvem as sexualidades. Sabemos bem todas as complexidades envolvidas no debate em torno das sexualidades e dos tabus morais que as envolvem, principalmente no Brasil, e de como foi difícil para as gueis o enfrentamento da epidemia nos primeiros anos, já que a AIDS se traduzia no imaginário social como uma questão ligada às homossexualidades.

Algumas reflexões são importantes de pensar: uma se refere ao fato de que até a chegada da AIDS, o Brasil vivia um momento de muitas experiências de reorganização social de vários movimentos, que hoje chamamos de identitárias, os quais estavam em busca de lugar de afirmação social e política. Neste contexto social, a população LGBTQ+ e principalmente as gueis estavam vivendo um momento de liberação sexual, fruto de uma conjuntura política sobre temas de comportamentos e tabus que romperam muros e oceanos. E neste contexto, é inegável que havia muitos lugares para pegação, e que a putaria era grande entre as gueis, principalmente nos grandes centros urbanos. Conversando com as mais antigas, que viveram esta época, elas se dizem saudosistas destes tempos.

Mas esta “liberdade”, tinha muitas limitações e não estava acompanhada do processo de cidadania fora destes espaços de sociabilidade, onde os guetos cumpriam um papel muito importante para esta população, pois era onde a sociabilidade era possível sem as amarras impostas pelo preconceito diário. Fora do gueto, no dia a dia, era no cenário da margem social o local onde estes corpos assujeitados transitavam. O mesmo corpo, que estava sendo discriminado, desqualificado por um olhar em uma esquina, era o mesmo que adentrava num parque público e se transformava em objeto de prazer, adquirindo outro sentido existencial, onde a cumplicidade se dava no anonimato, movido pelo desejo.

Esses corpos estavam marcados por estigmas, e as pessoas se movimentam na sociedade e com ele, o estigma, que impactava na mobilidade social destes sujeitos. Quando o HIV/Aids chegou, as gueis viviam uma clandestinidade, suas vidas não tinham a visibilidade e o empoderamento que vemos atualmente. As pessoas não assumiam sua homossexualidade no trabalho, na escola, na família, porque as homossexualidades eram muito fortemente associadas à ideia de doença, de patologia, de desvio de conduta.

É evidente que com a AIDS desnudou-se este universo visível e invisível, e revelou todas as contradições sociais, políticas e psicológicas tanto a nível individual, mas também como processo coletivo para todos os e as LGBTQI+. A AIDS acabou revelando muito mais coisa do que somente uma doença, principalmente para as gueis. Estes, quando infectados pelo HIV, eram desafiados a enfrentar as consequências em sua saúde e a visibilidade social que resultava para os soropositivos; afinal a ligação da AIDS com a homossexualidade era certa, e este lugar social de invisibilidade social e político onde estavam veio à tona com a epidemia.

Esta realidade foi mudando a partir do envolvimento e do protagonismo das gueis na organização e enfrentamento da epidemia, através das inúmeras organizações que foram surgindo pelo país e mundo. As gueis se apropriaram desta nova pauta social sendo protagonistas no enfrentamento da epidemia e a tornaram instrumento de luta que ultrapassou a questão da saúde. Pautaram o debate em torno das questões de direitos humanos, tema tão importante e caro na sociedade brasileira. A AIDS acabou contribuindo para que se ampliasse o debate para além da doença, pois os impactos eram sobre a vida de indivíduos, de pessoas que reagiam às consequências do estigma, ampliando os laços de solidariedade.

E foi neste contexto que foram surgindo as organizações LGBTs, e a partir de 1997, as Paradas, que sempre estiveram ligadas à epidemia. É ainda muito comum hoje em dia a questão da epidemia da AIDS ser pautada em torno da paradas pelo país. Essa associação, às vezes automática, da Aids com as Paradas não é pacífica, pelo menos para o Nuances. O debate vai no sentido de que a pauta da Aids, da saúde, não é hegemônica durante o evento, mesmo que saibamos de sua importância. Para o Nuances, as Paradas têm um sentido e um foco mais voltado para o campo dos direitos humanos, de celebrar a sexualidade, a diversidade, temas bem mais estruturais no debate em torno da pauta da cidadania da população LGBTQI+.

Outra questão importante também é pensar sobre a significação que podemos dar para a palavra ORGULHO, num contexto ligado ao processo político propiciado pelas Paradas, que deram uma visibilidade política de massa, causando um impacto na autoestima dos e das LGBTQI+. As Paradas, muito além de um evento festivo como muitos entendem, tiveram e têm uma repercussão social que não só rompeu com os guetos, mas ampliou o debate para além da política tradicional. Suas repercussões invadiram lugares até então nunca pensados, rompendo muros.

Outro fator importante é que as Paradas propiciaram um processo de construção identitária coletiva, pelo menos no que se refere a sexualidade, pois sabemos que identidade é algo muito complexo e são muitos os marcadores e fatores que estão imbricados neste processo. Mas é indiscutível que as Paradas tiveram e têm esse poder de fomentar um sentimento de pertencimento a um grupo social, por ser talvez um dos poucos lugares democráticos que possibilitam a participação de todas, rompendo questões de classe, raça e gênero, o que acabou tendo um papel muito importante para que esta população enfrentasse melhor suas questões subjetivas, individuais, existenciais, e evidentemente, tendo reflexos na saúde psicológica.

É como se as paradas deslocassem os corpos destes sujeitos de um lugar de margem para um outro espaço de poder, e isto sempre vai ter um impacto positivo sobre os sujeitos. Principalmente os corpos da população de travestis e trans que estavam e estão numa margem ainda mais opressora, e que com as paradas ocupam outros espaços, dando visibilidade para suas demandas. É importante termos em mente que a população de travestis sempre esteve na visibilidade, pois diferentemente das gueis sua expressão de sexualidade e de gênero implica numa visibilidade e enfrentamento constante.

Participar de uma Parada é, sem dúvida, um momento quase de catarse coletiva, onde a alegria é contagiante, tornando-a um evento diferenciado de qualquer outro. As novas gerações, que hoje saem de casa com a bandeira do arco íris nas costas, tomando as ruas das cidades, todas empoderadas, são fruto deste processo de cidadania. E esse empoderamento contribuiu para o rompimento com a situação de marginalidade, de submissão. Assim, os e as “novos LGBTs” já têm uma outra referência, não mais da doença, da patologia. Para as novas gerações é o direito e a cidadania que motivam sua existência. 

Uma das grandes questões que desafiam a prevenção do HIV é a adesão a tratamentos, cujas práticas estão muito ligados a autoestima. Neste sentido as Paradas, e em Porto Alegre a Parada Livre, cumpriu e cumpre esta função estratégica.

 

Célio Golin é militante do Nuances – grupo pela livre expressão sexual.

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