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“... A vida lê-se nas cicatrizes,
como essas que agora trazes no corpo e na alma”

Mia Couto, in “A espada e a Azagaia”

 

Por Jean Carlos de Oliveira Dantas

O outono chegou naquele dia de abril, trazendo uma tarde ensolarada que iluminava a volta de Dionísio para a sua casa, após um longo dia de trabalho com reuniões, discussões e apresentações. Dionísio sentia-se envolto, num misto de sensações, por um lado o sentimento de dever cumprido, por outro a sensação de desgaste físico e mental.

Desceu do ônibus, no ponto de sua casa, e foi caminhando pela calçada em direção ao seu lar, desviando de lixos, goiabas pisadas que caíram de uma árvore do seu condomínio e dos silêncios das pessoas que vinham em sua direção. Dionísio, desviava do silêncio dos outros para que eles não invadissem a sua própria voz silenciada pelos seus pensamentos.

Ao adentrar em seu prédio, acessou o elevador que estava à sua espera, e foi recebido por um grande espelho que amplificou a sua presença naquele pequeno espaço. Uma presença que por vezes passava despercebida de si mesmo; porém, naquela tarde, sua sensibilidade estava mais próxima de sua epiderme do que de costume, convocando-o para atentar ao seu corpo.

Um corpo, que, por vezes era estranho a si mesmo. Um estranhamento percebido por sua alma. Uma alma que guardava a imagem e a memória de um corpo antes da sua deformação. Era uma imagem estranha, que saltava aos olhos diante daquele corpo.

Naquele momento, enquanto o elevador trilhava a sua rota, Dionísio mirou-se no espelho, percorrendo com seus olhos a imagem do seu rosto. Uma face que acusava a presença de sulcos profundos provocados pela ausência de massa. Os sulcos daquele rosto não foram causados pelos anos acumulados, mas por uma combinação química tão potente capaz de exaurir todos os anjos e demônios que orbitam em nossa consciência. Coquetel Molotov Humano (CMH) foi o nome dado para esta combinação química, que nada mais é do que a mistura de um vírus que se alimenta de nossas células, medicamentos pesados aliados à predisposição genética e a solidão humana.

A pele do rosto e dos demais membros do corpo ressecam sob a ação do coquetel. A pele do corpo fica áspera, o que a deixa mais rude ao carinho das mãos amigas, amantes e afetuosas.

Os olhos e a boca também ressecam, as lubrificações oculares se tornam reduzidas, gerando dor nos olhos, além de perdas de dentes caninos e outros, fato este que acaba tornando nosso sorriso mais contido. Uma boca com menos dentes do que se deveria ter pode ser um marcador de classe social. Um sorriso largo com dentes faltando, pode apontar esta realidade. 

Dionísio percebeu que alguém apertou o botão do elevador num andar, mas ninguém entrou e, neste momento pensou: será que o peso dos seus fantasmas impediu o acesso de algum vizinho a este elevador? Mas, logo voltou a mirar-se naquele estranho que se refletia no espelho. Percebeu que o contorno de seus braços também padeciam da ausência de músculos; porém, possuía um colorido estranho gerado pelas veias que cobriam a sua pele branca e fina. Os braços não harmonizavam mais com o tronco, que acumulou mais gordura do que deveria ter. Um tronco que, na sombra da luz ausente, parecia tudo, menos uma parte de um corpo humano. Seguiu divagando: acho estranho que esta parte do nosso corpo seja chamada de tronco, mas enfim, vai entender o que se passava na cabeça da pessoa que criou este nome.

Os olhos de Dionísio se despediram dos membros superiores e ele passou a contemplar a região central do seu corpo, que compreendia o seu quadril. Percebeu que naquela área, que muitos chamam de culote, tinha perdido muita gordura. Uma perda que lhe gerava dor e desconforto quando dormia de lado em uma esteira ou superfície menos macia. Além disso, a ausência deste culote, ajudava a deformar ainda mais a sua autoimagem corpórea, que começava a ter contornos de um anfíbio bípede, lembrando uma dessas criaturas que fazem figuração em filmes de ficção ou de terror.

Ao lado do seu culote desgastado tinha uma estrada que conduzia os olhos desnudos à região dos glúteos – se é que podemos chamar aquilo de glúteo, no máximo uma bunda de passarinho. A gordura do seu glúteo se perdera pela voracidade do coquetel, e nela hoje jaz uma lembrança do tempo que era graciosa, confortável e justa ao peso do seu corpo. 

Dos glúteos, a viagem dos olhos continuou em direção às pernas e, apesar da calça comprida, percebeu que seu membro tinha ganhado contornos de atleta, com puro músculo magro. Percebeu que suas pernas tinham traços em comum com o seu rosto. As partes do seu corpo deformado possuíam sulcos que se se formaram devido à ausência de gordura. Para Dionísio, as pernas eram mais constrangedoras, pois exibiam veias grossas, coloridas e dolorosas.

Os membros inferiores, pensou num instante, também estão em desconexão com os membros superiores – e o silêncio se instalou naquele elevador…

Naquele momento de solidão ele pensou: somos mais perversos com as nossas fraquezas e desconexões, porque entramos em vales cinzentos e aquecidos pelas sombras de nossas imperfeições, acumuladas pelo trajeto que nossos corpos percorreram pela vida. A perversão é um fantasma interno que tem como objetivo anular a nossa autoestima, durante a caminhada que percorremos pela vida. Assim vaticinou quando chegou ao andar de seu lar.  

Dionísio sabe que aquela desconexão corporal expressa na beleza daquele espelho deve ser administrada por doses de insistência, pois a insistência é a melhor receita que nosso personagem desenvolveu para conseguir viver com aquela desconexão, que tornaram seu corpo, aos seus olhos, sem beleza e afeto, pois a arte do viver é para poucos.

Viver, pensou Dionísio, é a arte de se desviar deste insistente espelho que muitas vezes, não reflete a nossa imagem real, mas aquela que está na maldade dos olhos de quem está em nosso caminho. Assim, ele entendeu aquela máxima que alguém falou um dia: “o que os outros acham de nós é problema deles e não nosso”. 

“Berggasse, 19”, por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Jean Carlos de Oliveira Dantas, é psicólogo.


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