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Por Jean Carlos de Oliveira Dantas

“E todo pensamento era um pensamento dele,
todo sentimento era sentimento dele.
Na época, eu ainda não sabia que isso é o amor,
pensava que poderia ser sempre assim,
que aquele sentimento era concedido de graça.”

Liev Tostói, in “Felicidade conjugal”

 

Primeiro Ato: O amanhecer
Amanheceu e Augusto dos Anjos despertou cedo de seu sono, espreguiçando uma preguiça gostosa. Se levantou, calçou seus chinelos macios e abriu a janela de seu quarto que dava para uma vastidão verde das plantações de cana de açúcar. Olhou o sol e agradeceu a Deus pela sua vida. A sua casa ficava num conjunto residencial que fazia divisa com a área rural da cidade, que ao final do dia era invadido pelo cheiro do garapão – resíduo pastoso e malcheiroso oriundo do processo de fermentação da garapa (caldo de cana-de-açúcar). Estes cenários faziam parte da cidade de Corações Aflitos, que era um dos grandes centros impulsionadores do setor econômico sucroalcooleiro do Brasil.

Após o café, preparado por Florbela Espanca – esposa generosa e vigilante do comportamento do marido –, beijou e carinhou o rosto da pequena Cora Coralina – a primogênita que lhe deu o passaporte para entrar no mundo dos pais heteronormativos, que tanto almejava nas profundezas de sua alma errante. Augusto dos Anjos se despediu da família e partiu em direção ao centro da cidade, seguindo os passos do sol que aquecia a sua cabeleira.  

No compasso de sua sombra, foi caminhando em direção ao ponto do mototáxi, cantarolando: “É calor de mês de agosto, é meados de estação. Vejo sobras de queimadas e fumaça no espigão...”. O jovem cantava ensimesmado a música “Terra Tombada” de Chitãozinho e Xororó, tema escolhido para embalar as emoções que lhe saltavam ao coração, pois naquele dia seu sonho seria realizado nos estúdios da Voz Divina, gravadora especializada em música gospel.  

Ao chegar na gravadora, Augusto dos Anjos foi encaminhado à sala de preparação da gravação, onde recebeu todas orientações e suporte necessários para a condução tranquila do seu testemunho, que em breve iria proporcionar uma possível luz no fim do túnel para várias pessoas angustiadas que estavam desviadas do caminho do Senhor – pelo menos era assim que nosso artista professava a sua verdade junto aos seus irmãos/ãs da igreja.

Ao final da manhã, a gravação foi concluída com a definição dos quantitativos de cópias e um plano para distribuição em lojas especializadas, igrejas e grupos neopentecostais espalhados pelo território nacional. Para a foto da capa, foi escolhida a que ele tirou após o seu batismo, isto é, uma imagem de um homem feliz vestido com uma camisa de linho branco, segurando junto ao seu coração um botão de rosa amarela – símbolo da sua nova vida.

A gravação do testemunho do jovem Augusto dos Anjos foi alimentada pelo povo de sua igreja, que sempre o exaltavam a cantar o milagre operado em sua vida. Uma gente que se sensibilizou com a história de superação dos seus dois grandes desafios mundanos, que agora passaria a ser registrada e eternizada em fita cassete. A superação, segundo a memória de nosso herói, aconteceu quando ele se batizou nas águas sagradas de sua religião. As águas que lhe proporcionaram a cura para os seus desenganos – a AIDS e a homossexualidade.

Com a cura da AIDS e da homossexualidade, Augusto dos Anjos se entrega ao mundo heterossexual tão esmerado pelas profundezas da sua alma; se apaixona por Florbela Espanca, que embebecida pela sua prepotência, se junta aos seus para viabilizar a cura do seu novo amor e casa-se. Deste enlace matrimonial nasce Cora Coralina, uma linda menina, que segundo o casal veio selar os propósitos de Deus em suas vidas, pois toda vida é sagrada e consagrada ao Senhor.

Segundo Ato – O entardecer
Na cidade de Augusto dos Anjos, cercada pelas ondas verdes das plantações de cana de açúcar o sol já passava duas horas do meio-dia quando Clarice Lispector, da janela de sua casa, atentava para a leitura de um trecho da novela A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tostói, declamada pela menina Adélia Prado, sua vizinha e estudante do ensino médio, que estava iluminada pela possibilidade de ler um autor universal.

Do quintal de sua casa, Adélia Prado leu para Clarice Lispector o trecho da novela que lhe moveu as emoções:

“Só que, no fundo,
estava acontecendo o mesmo que se passa com todas as pessoas não muito ricas,
mas que desejam se mostrar parecidas com os ricos e,
por isso, conseguem apenas ficar parecidas uma com as outras:
o estofamento, a madeira escura, as flores, os tapetes, os bronzes, brilhantes e foscos
– ali estava tudo aquilo que todas as pessoas de determinada espécie
fazem para ficarem parecidas com todas as pessoas de outra determinada espécie”     

Uma leitura afetiva de um drama humano que demonstrava que a sensibilidade é algo passível de existir em todas as pessoas, independentemente da sua classe social, por mais que uma parte das sociedades modernas acreditem que os clássicos sejam obras que somente os eruditos conseguem absorver a sua essência – como vossas almas são empobrecidas.

Naquele momento, Adélia Prado e Clarice Lispector travaram um debate acerca do trecho da novela russa, chegando à conclusão de que pobres e ricos sempre coexistiram, assim como a injustiça, que fazia com que elas morassem numa favela margeada pela linha do trem e um córrego cheio de ratos e outros bichos peçonhentos. A conversa se estendeu um pouco, mas teve que ser interrompida porque Clarice Lispector precisava dar banho no seu mais novo: Olavo Bilac, um menino sorridente que conversava com os passarinhos. 

Ao final do banho, nossa heroína enxugou, penteou e perfumou seu menino de sorriso largo e olhos vivos, falando para si mesma: “menino banhado é menino cuidado”. Com a tarefa finalizada, deixou a cria com a sua mãe – uma mulher que vestia vestes de trapos desumanos acumulados embaixo de seu colchão assentado em um barraco iluminado à luz de lampião. Naquele final de tarde, tinha um bom motivo para se alegrar, pois iria participar da Vigília da Cura que seria comandada pelo Pastor Jean Genet, que segundo Clarice Lispector, era homem santo, curador das dores do corpo e do “esprito”.

Os cultos preenchiam o vazio da solidão de Clarice Lispector, tão castigada pela miséria humana que tanto machucavam os corpos e as almas das pessoas que residiam em sua casa. Uma casa tão desprovida de provisões para atender minimamente a dignidade de uma mãe em prover o alimento, o sono e o conforto aos seus, mas que ao mesmo tempo acomodava um horizonte de possibilidades e curas pela via das graças de Deus. Provida de fé, Clarice Lispector se encheu de júbilo pelo seu sagrado elucidador, que no seu íntimo foi materializando a transformação de algumas realidades, como a cura de uma doença que lhe causava desgosto e vergonha para si, e a compaixão de sua mãe e seus filhos.

A cura da AIDS, realizada pela intercessão do pastor Jean Genet junto a Cristo, libertou Clarice Lispector de seu tratamento, que numa decisão individual e deliberada, se deu alta da atenção viabilizada pela equipe de profissionais da saúde que se deslocava toda semana do Serviço de Saúde para sua residência. Apesar da recusa em receber o cuidado, a equipe continuava a visitá-la na tentativa de realizar alguns procedimentos e sensibilizá-la, para que ela pelo menos não abandonasse o tratamento medicamentoso. Em algumas visitas, o clima na residência ficava tenso e, por vezes, o insistente psicólogo era obrigado a sair às pressas daquela casa em meio a xingamentos, cabos de vassoura e água nas costas.    

Terceiro Ato: O anoitecer
E a noite chegou quando os vagalumes despontaram da natureza daquela simpática cidade do noroeste do estado de São Paulo, deixando o frescor do musgo serenado mais adocicado aos sentidos de Pagu, que sentada numa espreguiçadeira na varanda de sua casa, voltava às memórias de um tempo que ficou impregnado nas fotografias do álbum que segurava nas suas mãos, como aquelas paisagens da velha Rússia, que passavam pelos olhos e sentimentos de uma personagem da novela Sonata a Kreutzer, de Liev Tostói.

Repassando as fotografias, Pagu revisava seu passado recente, quando tinha autonomia para ser ela mesma, decidindo suas ações de acordo com a perspectiva que guiava a sua vida: a liberdade de amar e ser amada por aqueles, que ela permitia exercer a sua vivacidade à luz do signo do amar se aprende amando, de Drummond. Essa viagem ao centro de si mesma se prolongou até o momento em que seu pai, o afetuoso Fenando Pessoa, lhe chamou para o jantar, que estava quentinho na mesa à espera da costumeira reunião entre pai e filha.    

Os jantares são momentos para repassar o dia junto daqueles com quem você convive; assim sendo, Fernando Pessoa quis saber de como foi o dia de Pagu, que sem rodeios falou que tinha ligado para os filhos (Paulo Leminski e Luís de Camões), que os meninos estavam bem e não tinham aprontado nenhuma arte até aquele momento; também conversou um pouco com Cecilia Meirelles (avó paterna que cuidava das crianças desde o acometimento da doença de Pagu) e comentou que a velha senhora falou de suas dores no ciático, e finalizando seu relato, informou ao pai que todos estavam bem, na medida do possível.  

Após o jantar e arrumar a cozinha, seu pai preparou os remédios, separando num pires: 2 comprimidos de darunavir, 1 de dolutegravir sódico, 1 de ritonavir, 1 de ezetimiba, 1 de atorvastatina cálcica e 1 de maleato de enelapril, que foi preparado com todo afeto de pai atencioso, que levou para sua filha com um copo com água fresca do velho filtro de barro.

Ao chegar à sala onde Pagu assistia a segunda edição do Tem Notícias (filial da TV Globo), o pai colocou o pires e a água na mesinha de centro para a filha tomar os remédios. Naquele momento, os olhos verdes de Pagu miraram os olhos desconfiados do pai, pronunciando a sua recusa em tomar aqueles medicamentos. Estava indignada com a atitude do pai, que insistia em impor algo que ela não precisava mais. Clarice Lispector colocou para Fernando Pessoa, que ele ainda estava influenciado pela equipe de saúde, que insistia em tratar algo que não precisa mais ser tratado, pois estava curada, em nome dos desígnios de Deus. O pai ouviu a filha e não emitiu nenhuma palavra, pois tinha como princípio o pensamento “algumas palavras faladas, que são duras, têm o seu tempo de depuração no coração de quem devem fala”, abençoou a filha e saiu para se recolher em seus pensamentos.

Apesar de Clarice Lispector acreditar intimamente na cura da AIDS, esse salvamento não cessou a sua angústia, que era gerada por uma autopercepção de inexistência de liberdade, pois sua alma sentia-se acorrentada a um corpo enfermo, que por sua vez, sentia-se aprisionado a uma cadeira de rodas. A tensão provocada entre a realidade imposta ao seu corpo pelas sequelas decorrentes da doença, a vontade de libertar a sua alma para voar o voo de seus desejos e a cura sagrada da sua AIDS, fazia com que nossa heroína cada vez mais ficasse refratária a qualquer cuidado proporcionado pela equipe da ADT – Assistência Domiciliar Terapêutica.       

Quarto e último ato: A alvorada
A esperança é a pedra fundamental que sustenta a fé humana no livramento de uma doença crônica, como a AIDS, que durante muito tempo foi uma das primeiras pautas dos movimentos sociais e das pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA), junto aos governos, laboratórios e os principais setores da sociedade.     

E, olhando para a história da resposta nacional ao HIV/AIDS, recordo-me dos meados dos anos de 1990, quando o Dr. David Ho apresentou ao mundo uma nova classe de medicamentos – os Inibidores de Protease (IP), na 11ª Conferência Internacional de Aids, em Vancouver, Canadá, criando um novo arsenal para o sistema imunológico combater a reprodução do HIV. Assim sendo, com o avançar da cronificação da doença, a cura da AIDS foi gradativamente ficando para um segundo plano, pois outras frentes se faziam urgentes, como aquela que garantia o tratamento medicamentoso, que foi impulsionado pelo processo implementado pela ativista Nair Brito, por meio da advogada Áurea Celeste da Silva Abbade, do GAPA SP contra o Estado, e a aprovação da Lei 9.313, de 13/11/1996, defendida pelo ex-presidente e então deputado, José Sarney, que garantiu o acesso universal aos antirretrovirais. Estas estratégias técnicas, sociais e políticas, contribuíram diretamente para a institucionalização da política do SUS para o HIV/AIDS.

A política estatal criada para responder aos desafios impostos pela pandemia do HIV/AIDS foi uma das conquistas da sociedade brasileira. Mas, os dividendos desta estratégia de Estado acabaram não respondendo a algumas necessidades de uma parcela de PVHA que desejavam, do fundo de suas almas, angustiadas e desprovidas de esperança, a cura da AIDS. Para estas pessoas, a cura somente poderia ser proporcionada pelo poder das mãos de Deus.     

A ideia de um poder divino pode ser entendida como uma das bases geradoras do pensamento mágico, que para muitos é consolo de dores e desesperanças, principalmente para PVHA desprovidas de mecanismos individuais/coletivos de cultivar esperança por dias melhores. Essas pessoas não vislumbram um horizonte de possibilidades de melhoria da sua condição social e de valorização da sua presença, por outras pessoas da mesma sociedade, que ditam as regras sociais e que aos pés de Deus pregam o amor ao próximo, mas que no cotidiano das suas ações desprezam aquelas que não pertencem ao seu meio, que não têm a mesma cor de pele e nem a mesma origem europeia, portanto não podem ascender ao Olimpo, devendo permanecer no território dominado por Hades.

Esse negacionismo das classes sociais mais abastadas fortalece a estratificação do nosso povo em uma sociedade de castas à brasileira, que somada a construção dos vários sagrados na constituição da nossa nação, acabam criando uma tábua de salvação que se utiliza do pensamento mágico/religioso na cura de uma doença grave, que apesar disso, sempre andou pari passu com a medicina e a ciência.   

A busca pela cura, no campo do sagrado ou também junto a este, pode não se configurar como um ato negacionista. Aqui me refiro ao negacionismo praticado por alguns governos ou instituições que negam a ciência. A negação da ciência pelas lideranças destas instituições da nossa sociedade é investimento para justificar seus projetos particulares de interesses escusos, geralmente alimentados pela centralização e manutenção de um poder pseudossoberano sustentado e mantido pela manutenção da ignorância humana. Mas, no caso de uma pessoa que vive com uma doença crônica como a AIDS, penso que a negação e o rechaço do uso da medicação e da atenção ao cuidado se dá por outras vias psicossociais ou religiosas.

A via que orientou as escolhas de Augusto dos Anjos, Clarice Lispector e Pagu, pode ter sido a da dor existencial. Uma dor sentida por almas e corpos marcados por estigmas de uma doença que criminalizou suas existências. Uma doença que lograva a estes a solidão da dor solitária. E a solidão, pode ter sido um lenitivo que forneceu um espaço de escuta para que ele e elas escutassem a si mesmos; no intuito de decidirem o rumo a ser tomado nas suas vidas, como o abandono do tratamento para o HIV/AIDS, pois quem iria cura-los não seria a medicina e, sim, Deus.  

O sagrado fez Augusto dos Anjos, Clarice Lispector e Pagu, conscientemente ou inconscientemente, alimentar a esperança num milagre para a cura da AIDS. A espera desse milagre foi alimentado por cada um de nossos personagens e consubstanciado nas suas orações, nos seus momentos de ingestão dos medicamentos, quando estavam diante de seus médicos/as, quando beijavam seus amores num colóquio de juras de amor eterno, pois os justos assim concebem o amor; no adormecer de cada sono silencioso e no despertar do amanhecer, quando cada um/a, com sua fé, mesmo sem se perceber, se renovava diante do sol ou da chuva que a natureza lhes apresentava.   

E, caminhando para o encerramento desta missiva ao lado da música de Mariza – uma linda cantora lusomoçambicana que empresta sua voz para celebrar o Fado – me pego pensando na espera do milagre da cura da AIDS, que por mais ilógica que seja aos pensamentos racionais, é uma presença constante no silêncio dos desejos de muitas PVHA. Um desejo vocalizado ou não, mas que se apresenta nos passos do caminhar diário de homens e mulheres que buscam no seu jeito de ser e existir, fazer a vida cada vez mais ter sentido para si.

Para Augusto dos Anjos, Clarice Lispector e Pagu, a presença viva e decisiva naquele cotidiano onde aconteceram as suas, foi fundamental para cada um e para aqueles/as que lhes queriam bem, pois no fundo dos seus corações, todos/as acreditavam que eram muito mais do que um vírus – eram filhos/as de Deus.

“Berggasse, 19”, por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Jean Carlos de Oliveira Dantas, é psicólogo.


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