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“... Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe...”
Benjamim Moser, in Clarice, uma biografia.
Por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Os olhos de Samuel me fitaram pela fotografia que me enviaram eletronicamente, mas a sua presença era silenciosamente física, porque o olhar dos olhos de quem olha não precisa estar presente para comunicar o que se quer dizer.
O pequeno menino perguntava à minha consciência por que foi abandonado. Por que na maternidade, falaram que ele era uma criança exposta? As pessoas de branco perguntavam onde sua mãe fazia acompanhamento. E o que era transmissão vertical do HIV, pois antes de tirar seu primeiro sono, viu o início de um debate sobre esse tema. Cochilou porque o sono dos justos era melhor do que a participar da vigília dos homens de ciência.
Samuel trouxe para o mundo a sua fofura, fragilidade e ausência de uma parte de si – a mãe, que devido aos infortúnios produzidos pela nossa sociedade, não conseguiu permanecer com seu filho. A sociedade que promove a adoção de crianças órfãs e abandonadas é a mesma que produz o abandono de filhos por mães frágeis e vulneráveis.
Assim que acordou, nosso novo herói foi dialogar com os meus olhos para saber do que se tratava aqueles temas que presenciou na maternidade e, com a simplicidade das línguas dos homens, meus olhos foi discorrendo sobre cada pergunta, mas iniciou por aqueles que dizem respeito ao universo do HIV/AIDS. Assim como os olhos no olhar de Samuel, começamos a prosear:
- Oi, tudo bem, meu lindo? Meu nome é Joaquim, seu novo amigo e aquele que você escolheu para esta primeira conversa neste mundo belo e cheio de coisas não tão belas assim.
- Você me perguntou o que é uma criança exposta? Pois bem, quando você estava na barriga da sua mãe, você conviveu com tudo que ela lhe acarinhava como o amor, afeto, alimento, água quentinha, colo e outros alimentos. Você, enquanto morava na sua nave-mãe, ficava exposto a tudo isso. Além dessas coisas gostosas que você conviveu, tinha uma que não era muito legal, mas não tinha como evitar. Essa coisa era um vírus. Vírus é uma dessas coisas que a gente pega durante a nossa vida, vivendo por estas terras. Você conviveu com um vírus. Você ficou exposto a um vírus, por isso que os médicos falaram que você era uma criança exposta. No seu caso, o vírus chamava-se HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana. Assim sendo, para aquelas pessoas que trabalham na maternidade e, em outras áreas e serviços de saúde, você é uma criança exposta ao HIV.
- Para finalizar, tenho algo de importante a lhe dizer: o fato de você ter sido exposto ao HIV não significa que esse vírus também vai morar em você!
- Acho que esta é uma boa notícia, né?
Pausa I: Samuel sorri.
Volta da pausa I: Joaquim continua a explicação.
- Para o vírus não morar em você, o pessoal que cuidou da saúde da sua mãe sempre a orientou com os cuidados com a saúde de vocês dois, como por exemplo a tomada correta de medicamentos para evitar a ampliação da carga do vírus no sangue e o surgimento de outras doenças que pudessem favorecer a sua infecção durante o tempo que você ficou navegando na sua nave-mãe. Assim, quando você desembarcou da sua viagem, já tomou aquele xaropinho doce, chamado AZT e se acabou no leite da mamadeira e, não no peito da mamita. Tudo isso, colaborou para você não viver com o vírus para a eternidade da sua existência entre nós.
- É, meu novo amigo, você nem chegou por estas paragens e já foi sendo apresentado a um monte de informações sobre você, sua mãe e a vida. Quanta coisa para você entender de uma vez só, né meu fofo?
Pausa II: Samuel fecha os olhos para um leve cochilo.
Volta da pausa II: O fofo acorda, se espreguiça, sorri e sugere que voltemos ao diálogo.
- Oiiii, pelo jeito o sono foi muito bom, né?
- Então, vamos voltar ao nosso papo cabeça: meu lindo, agora vamos falar sobre a sua segunda dúvida: por que as pessoas de branco perguntavam onde sua mãe fazia acompanhamento, não é? Então..., toda mãe que vive com HIV/AIDS, geralmente, faz seu acompanhamento num Serviço Especializado em IST/AIDS, conhecido como “SAE”; ou em uma Unidade de Saúde, conhecida como “UBS”, muita gente também chama de “postinho”; ou em ambulatórios de hospitais públicos “do governo”; e outras mães, em consultórios particulares. Quer dizer que toda mãe pode fazer seu tratamento em algum destes lugares. Então, acompanhamento significa tratamento, ou melhor, onde a mãe é cuidada, pois quem vive com HIV/AIDS, não é tratada, e sim cuidada. O pessoal da maternidade, naquele momento em que você chegou, começou a se perguntar: onde a sua mainha fazia tratamento, porque quanto mais informações eles tivessem sobre a sua mãe, mais seguros eles estariam em cuidar de você. Mas, por outro lado, esta pergunta pode ter sido trazida ao grupo devido a sua própria insegurança em lidar com aquele momento, apesar das orientações para a realização de um bom parto de mulheres que vivem com HIV/AIDS já estarem disponíveis há muito tempo para profissionais de saúde.
- Meu amigo, todos devem lembrar que uma mãe vivendo com HIV/AIDS é muito mais do que um vírus.
Pausa III: Aviso aos navegantes: O bebê está a obrar! – o divino abalou na fralda.
Volta da pausa III: Bebê limpo, cheiroso e cheio de talco.
- Agora, vamos para outra pergunta, é melhor eu não demorar, porque senão vossa excelência vai para um novo cochilo, ou sabe-se lá o que pode acontecer nesta fralda linda e cheia de elefantinhos. Então, vamos a outra pergunta: o que é transmissão vertical do HIV?
- Fofuxo lindo, transmissão vertical do HIV, pode ser entendida como a passagem do vírus da mãe para o seu filhote. Isso pode ocorrer durante os meses em que o(a) filho(a) mora dentro da nave-mãe, ou na hora que ele(a) sai da nave-mãe, ou quando ele(a) bebe leite no peito da mãe. Estas são as principais possibilidades de acontecer a infecção no recém-nascido, mas cada vez mais, com o avanço dos cuidados com a mãe e a nova pessoinha que está se formando durante toda a gestação, no momento do parto e, a atenção aos primeiros meses de vida, o número de crianças com HIV/AIDS despencou nos últimos anos.
Pausa IV: Bebê embarca em um novo longo e carinhoso soninho.
Volta da pausa IV: Bebê cheio de preguiça e com fome, que foi sanada para dar continuidade ao diálogo, pois nosso herói estava mais focado nesta última novidade: o leite quentinho da mamadeira do Batman.
- Então, meu rei, agora que você está de buchinho cheio e curioso, vamos voltar a nossa conversa, para terminar este longo assunto e começarmos a brincar.
- Então, vamos a sua derradeira pergunta “Por que fui abandonado?” Confesso que não sei. Se soubesse poderia lhe falar, e com a minha fala, lhe apresentar um possível alivio para sua alma gentil, mas não sei. Só sei que não quero julgar a sua mãe, pois ela deve ter passado por algo tão forte, difícil e insuportável, que a fez abrir mão do seu bem mais precioso, que é você, seu filho.
- Meu lindo, para mim toda mãe é sagrada, mas muitos atos incompreensíveis, num primeiro momento, não lhe retiram este atributo. Confesso que minha pequenez masculina não me proporciona meios para chegar até as profundezas da alma de sua mãe para saber dos motivos que a levaram a lhe abandonar.
- Me perdoe, pela minha ignorância masculina.
Pausa V: Instalação do silêncio da dúvida e da cumplicidade dos olhos que se olham para compreender a ausência da primeira mãe.
Volta da pausa V: E o sorriso do infante quebrou o silêncio.
- Digníssimo zoiudo, continuando o nosso bom papo, penso que existe uma possibilidade de sua mãe ter lhe deixado com aquelas pessoas, que te conduziram ao abrigo, porque ela não tinha ninguém para lhe apoiar, para lhe ajudar, que não lhe julgasse, e oferecesse ajuda sem interesses dogmáticos. Enfim, ela possivelmente não encontrou humanidade nos humanos com quem interagiu durante a vida e, em especial, durante a sua viagem pela gestação, que penso, foi muito solitária. Além disso, a sua mama deve ter passado toda sua gestação com medo de lhe passar o HIV. E, isso é até esperado, porque, por mais avanços da medicina no campo do HIV/AIDS, e a redução de casos de crianças que nascem com HIV, o medo da mãe em passar o vírus para seu bebe durante a gestação e/ou na hora do parto é muito presente na alma dessas mulheres.
- É meu amigo, vivemos numa cidade de cerca de 12 milhões de habitantes, cheias de discursos humanistas, com pessoas falando aos quatro ventos “Gratidão”, “Gratidão” e “Gratidão”, mas que não conseguem estender a mão para uma vida solitária, que carrega no seu corpo e alma uma outra vida, que quando despertar para o mundo, também pode vivenciar esta mesma solidão.
- Você já percebeu que a vida dentro da sua nave-mãe era muito melhor do que esta, mas é aqui que você vai existir, crescer e florescer com toda sua força e beleza.
Pausa VI: O bebê dorme o sono dos justos.
Volta da pausa VI: O danadinho fez xixi, mas logo já trocaram a fralda por outra com o símbolo do Corinthians. O bebê ficou feliz, voltando seus olhos para o amigo, solicitando a continuação e finitude da troca de palavras entre ambos.
- Meu nobre corintiano, estávamos falando da sua mãe, ou melhor da sua primeira mãe, que peço que guarde a sua linda face no cofrinho que existe dentro do seu coração. A sua mãe foi a comandante da sua nave-mãe, que lhe transportou da mãe-natureza até aqui. Então, ela merece todo nosso respeito, afeto e consideração.
- Falo isso, meu nobre pirilampo, porque o seu coração deve estar limpo de dúvida, ódio e rancor, porque ele deve estar livre para receber o amor de outras almas que vão lhe amar, cuidar e zelar pelo resto de sua existência entre nós. Você poderá ser abençoado, por um casal mãe/pai, ou mãe/mãe, ou pai/pai, ou mãe solo, e ou pai solo. Independentemente do tipo de maternidade e paternidade que você tiver, todas são bem-vindas e merecem ter a nobreza de acolher você, assim como você se dar ao luxo de se tornar filho deles(as).
“Berggasse, 19”, por Jean Carlos de Oliveira Dantas
Jean Carlos de Oliveira Dantas, é psicólogo.
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