Por Ronaldo Hallal[1] e Nêmora Tregnano Barcellos[2]
A tragédia impulsionada pela pandemia produziu, além de dor e sofrimento, um conjunto de informações clínicas e epidemiológicas a respeito de seu controle. Sabemos, desde fevereiro do ano passado, da existência de risco concreto de colapso do sistema de saúde. Médicos italianos precisaram escolher pacientes com melhor prognóstico para receber oxigênio por meio de respiradores e excluir os mais idosos e mais doentes. Seguramente foi uma das razões para as elevadas taxas de mortalidade entre os mais idosos, observadas na Itália.
As experiências internacionais mostraram que é possível enfrentar e controlar a covid-19, seja pela redução da mobilidade populacional, como foi feito na China, seja pela testagem em massa e imposição de quarentena, tal qual ocorreu na Coréia do Sul, seja, ainda, com liderança política na condução da resposta nacional, como no caso da Nova Zelândia da Primeira-Ministra Jacinda Ardern, que estabeleceu lockdown quando apropriado, atingindo baixas taxas de mortalidade.
Na Europa, países como Reino Unido, França e Alemanha projetaram o colapso de seus sistemas de saúde e restringiram atividades sociais e econômicas, determinando lockdown e conseguindo assim reduzir a circulação de pessoas, o que desacelerou a curva de novos casos e mortes, evitando o colapso que havia ocorrido na Itália.
A Suécia, por sua vez, apostou na exposição da sua população à doença para desenvolvimento da “imunidade coletiva” como estratégia de conter a expansão da covid, apenas recomendando a “implantação dos protocolos de prevenção”, como uso de máscaras, distanciamento e higienização das mãos. Essa estratégia resultou na mais elevada taxa de incidência e mortalidade, além do maior impacto econômico, entre os países nórdicos. No final de 2020, o governo de Stefan Löfven e as autoridades sanitárias suecas admitiram que sua estratégia foi inapropriada para conter a pandemia.
Entretanto, o aprendizado da história recente e as evidências científicas disponíveis não foram incorporados nas decisões programáticas pelos principais tomadores da decisão em nosso país. O Brasil não possui uma coordenação nacional para responder à pandemia. Pelo contrário, o governo federal ataca o isolamento e o uso de máscaras e estabelece confronto com governadores e prefeitos. Toma atitudes ainda mais graves ao disseminar informações falsas que subestimam a gravidade da doença, questionam a segurança de vacinas, promovem tratamentos ineficazes e distorcem a decisão do STF que resgatou o princípio da gestão e responsabilidade compartilhada do SUS entre os três níveis de governo, definido na Constituição brasileira.
Um exemplo disso foram as recentes cenas protagonizadas por grupos políticos ligados ao Presidente da República e setores do empresariado que organizaram manifestações em oposição às medidas de prevenção baseadas na redução da circulação de pessoas, contribuindo para a disseminação da doença e para o surgimento de variantes virais. Em consequência da flexibilização das medidas de prevenção e da ausência de vigilância e planejamento a curto e médio prazo, Manaus, que já sofrera pico epidêmico nos meses de junho a agosto, vê se instalar novamente o caos.
A força-tarefa do governo federal enviada a Manaus, liderada pelo General Pazuello, que incluiu médicos adeptos do “kit covid” para tratamento precoce, errou grosseiramente na abordagem, no diagnóstico situacional e, consequentemente, na estratégia: as pessoas não morreriam por falta de “tratamento precoce”, mas literalmente devido à “falta de ar”. O diagnóstico do general e sua equipe foi que a cloroquina evitaria mortes, mas na realidade não havia oxigênio nos hospitais. A insistente pregação por tratamentos desprovidos de resultados científicos de eficácia reflete um misto de incapacidade técnica e devoção dogmática.
Ainda que Manaus possua características próprias, o colapso do sistema de saúde poderia ter sido evitado e deveria servir como alerta a outras capitais do Brasil. Entretanto, as primeiras medidas adotadas pelo novo governo de Porto Alegre não observam a história recente e a literatura científica. Ao contrário das boas experiências asiáticas, europeias ou neozelandesa, as ações implementadas pela gestão estadual do RS e municipal de Porto Alegre aumentam a exposição da população à doença e aos tratamentos sem eficácia.
É inevitável que a plena atividade comercial em lojas, shopping centers, bares ou restaurantes intensifique a proximidade e o contato entre as pessoas, não apenas dentro desses estabelecimentos, mas também no deslocamento em transporte coletivo e na alimentação em restaurantes, afetando de forma mais intensa os trabalhadores, formais ou informais. Vale lembrar que a mortalidade já é maior entre não brancos quando comparados a brancos e entre aqueles que possuem menos de cinco anos de escolaridade comparados a pessoas com ensino médio ou nível superior.
Porto Alegre e outros municípios da região metropolitana decidiram negligenciar os protocolos de prevenção, desalinhando-os de sua equivalência pelo risco de transmissão da doença, expresso no Modelo de Distanciamento Social Controlado. Isso equivale a dizer que nesta semana, em que o mapa de estratificação de risco elaborado pelo governo estadual mostra a Região Metropolitana de Porto Alegre com “bandeira vermelha”, os protocolos de prevenção adotados nesta região serão aqueles propostos para “bandeira laranja”. Significa também que nunca serão adotadas medidas mais restritivas referentes à “bandeira preta”.
O SARS-Cov-2 é um vírus RNA que gera variantes que podem adquirir diferentes propriedades, tais como maior transmissibilidade ou mesmo maior virulência. A grande circulação viral pode propiciar, portanto, a produção de novas cepas, agregando dificuldades para o seu controle. Outra possível consequência é reduzir a efetividade das vacinas devido à maior exposição da população à transmissão.
A segunda medida anunciada pela gestão municipal de Porto Alegre é a incorporação do “tratamento precoce”. Dados “in vitro” sugeriram que diversos medicamentos inibiam o SARS-Cov-2 em cultura de células de macacos, como é o caso de antirretrovirais utilizados para tratamento do HIV, cloroquina e vermífugos, no entanto nenhum deles demonstrou qualquer utilidade quando foram testados em pesquisas clínicas. De fato, Ensaios Clínicos Randomizados realizados na América do Norte, Espanha e Brasil, entre outros países, não mostraram diferenças quando se comparou a eficácia do tratamento com hidroxicloroquina e azitromicina ao placebo, seja em pacientes ambulatoriais ou hospitalizados. Esses estudos incluíram o “tratamento precoce” desde o 1º, 3º, 5º ou 7º dia após o início dos sintomas e não mostraram diferenças quando foram analisadas a duração dos sintomas, a necessidade de hospitalização ou a ocorrência de mortes. Por outro lado, pacientes que receberam tais medicamentos tiveram significativamente mais efeitos adversos comparados àqueles que receberam placebo.
Ivermectina, nitazoxanida, vitamina D e zinco também não possuem eficácia, restando apenas dados secundários provenientes de estudos retrospectivos e não planejados para esta finalidade, portanto com menor força de evidência científica.
Corticosteroides são adequadamente indicados quando há redução da oxigenação sanguínea devido ao comprometimento pulmonar secundário ao processo inflamatório desencadeado pela covid-19. No entanto, corticosteroides não têm indicação técnica na ausência de hipóxia e lesões pulmonares, além de serem potencialmente prejudiciais, caso utilizados nos primeiros dias de sintomas, pois podem agravar a doença devido ao aumento da carga viral.
O manejo terapêutico da covid deve ser individualizado e nunca baseado na estratégia de “kits”. Estes não causam benefício, mas dano potencial, tanto no plano individual, devido a efeitos adversos ou negligência a outros sintomas pelo fato de o paciente sentir-se tratado, quanto no plano coletivo, pelo relaxamento de medidas preventivas devido à falsa sensação de segurança.
São 25 mil comprimidos de hidroxicloroquina, 25 mil comprimidos de ivermectina e 52 mil comprimidos de azitromicina adquiridos com recursos públicos ao invés de utilizá-los na aquisição de testes diagnósticos e antibióticos ou mesmo para ampliação de equipes de saúde ou na melhoria dos serviços de saúde da periferia da cidade. Diante desta pandemia, os gestores de Porto Alegre ajudariam a população se utilizassem a ciência para definir suas políticas e evitassem o emprego dos escassos recursos públicos em ações que aumentam o risco de transmissão comunitária e a mortalidade, e ainda expõem a população a tratamentos ineficazes. Sem utilizar a produção científica mundial e as melhores evidências científicas disponíveis, não conseguiremos enfrentar a pandemia.
“Hallal et al”, por Ronaldo Hallal
Ronaldo Hallal é médico, infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.
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