Médica põe código de ética acima da lei 12.984/14

Por Vanessa Campos

Dentre tantas formas de morrer, sem dúvida, o terror e sentença de morte das pessoas vivendo com HIV ou aids (PVHA), é a exposição da sorologia. A partir dela, todas as formas vis de torturas físicas, mentais e sociais são exercidas por pessoas sorofóbicas.

A história da epidemia de aids nos mostra o quanto o isolamento social foi, e continua sendo imposto às PVHA. Esta morte civil é uma prisão que nos desqualifica e nos reduz ao tamanho insignificante do HIV e, ao mesmo tempo, nos transforma numa bomba-relógio ambulante que precisa ser desativada a todo custo.
Quem ousa enfrentar o status quo e decide exercer sua cidadania e direitos, se expõe aos requintes de crueldade de uma sociedade doente.

Nossos corpos são rotulados como impróprios para o sexo, para o trabalho, para a vida em família e, não mais que de repente, profissionais de saúde (deuses do olimpo terrestre?!) passam a ditar como devemos agir e, é através deles que inicialmente experimentamos o fel da pressão de revelação da sorologia. Se temos relacionamento fixo, EXIGEM (em letra maiúscula mesmo) que façamos a revelação do nosso diagnóstico para que a pessoa possa ser testada o mais rápido possível. Deixamos de ser alguém que precisa de tempo para digerir a nova realidade, alguém que necessita de apoio psicológico e tempo para organizar sua existência a partir do HIV e passamos a ser somente uma ameaça que precisa ser contida. Afinal, nos definem como vetores de transmissão.

Se exercemos nossos direitos reprodutivos, encontramos nas maternidades um modelo dos campos de concentração nazista.
Em 1999, quando tive minha segunda filha, na maternidade pública, experimentei os horrores do isolamento em uma sala de pré-parto onde fiquei 16 horas sofrendo sem nenhuma assistência. Só fizeram meu parto quando minha tia foi me visitar, descobriu que eu estava abandonada e então exigiu meu atendimento. Depois fui isolada com minha bebê numa enfermaria cheia de baratas. Meus seios inchados, latejando e vazando leite enquanto ela berrava de fome a madrugada inteira sem ninguém para fornecer a fórmula láctea.
Em 2001 voltei ao campo de concentração e, desta vez, fiquei numa enfermaria com outras mulheres. Durante a ronda, a pediatra berrou a seguinte pergunta enquanto apontava na direção do meu leito: Por que aquela mulher está manipulando a criança sem luva?! A mulher era a minha cunhada (que não sabia do meu HIV) e estava trocando a fralda da minha filha.
Fui “orientada” a desinfetar o banheiro com água sanitária e na caderneta de saúde da criança a exposição da minha sorologia marcou presença.

Você pode estar pensando: agora o serviço de saúde está mais humanizado e isso não acontece mais. Ledo engano...
Dia 15 de novembro uma mulher me chamou no messenger do Facebook e relatou que no início do mês passou por humilhações similares numa maternidade em Palmas, no Tocantins: isolamento, maus tratos e exposição de sorologia na caderneta da criança.

Antes, no dia 10, ouvi um podcast (publicado no Facebook) de uma entrevista com uma infectologista de Vitória (ES) e lá pelas tantas ela declara que orienta expressamente seus pacientes a revelarem a sorologia para parcerias sexuais fixas porque, segundo seu julgamento, a outra pessoa tem o direito de saber esta informação até para decidir se continua o relacionamento com a PVHA. Além disso, quando questionei se ela deixava de atender o paciente, afirmou que se o paciente não seguir seu “conselho” ela não faz mais seu acompanhamento médico, alegando:

“Na minha concepção humana não existe relacionamento com segredos entre os pares. Quem é meu paciente sabe que pra relacionamento eventual não faz a menor diferença não revelar a sorologia. Mas se quer compartilhar a vida, não consigo imaginar isto com segredos entre as partes.”

Citou também “objeção de consciência” e o Código de Ética Médica para validar sua atitude sorofóbica.

Lá pelas bandas do Instagram, me deparei com outra médica, desta vez uma ginecologista que fez o seguinte comentário num post que tratava do direito da PVHA em manter o sigilo sorológico preservado:

“Seu parceiro sexual tem que ter a escolha de manter o relacionamento ou não baseado sim na condição de saúde que você apresentar. Eu estou proclamando a transparência nos relacionamentos. Posso te garantir que todos os meus pacientes (99%) mulheres têm o entendimento de não esconder nada da pessoa que está junto, seja por uma vida ou por um mês. Estando indetectáveis ou não, é uma prova de amor!”

Quando argumentei que isso é sorofobia ela me deu a carteirada desfiando sua extensa experiência com mulheres HIV+ no Hospital Gaffrée Guinle no tempo que a enfermaria 10 era referência para aids. Ela, contrariada, ainda me diagnosticou com doença psicológica e disse que eu precisava me tratar.

Profissionais de saúde empáticos, que praticam a escuta ativa e não criminalizam nossos corpos são um presente para as PVHA. Sonho com o dia que profissionais assim serão maioria e não a exceção.

Essa fogueira da exposição sorológica embutida no discurso médico, que vem disfarçada de opinião, nos MATA psicologicamente, socialmente e fisicamente. O senso comum da sociedade a alimenta para controlar e consumir nossos corpos!

A pesquisa Índice de Estigma em Relação às Pessoas Vivendo com HIV e Aids revela dados estarrecedores de discriminação nos serviços especializados de assistência (SAE) às PVHA.

Faltam 2 dias para o 1º de Dezembro – Dia Mundial de Luta Contra a Aids e ainda é este atendimento médico desumanizado que enfrentamos diariamente.
Chegamos em 2020 e a conclusão é que nunca saímos do terror do início da pandemia de aids no que se refere a estigma, preconceito e discriminação. Está mais do que na hora de voltarmos a fazer este enfrentamento com a força e a determinação de nossos pares dos anos 1980-1990.

 

“Cor de Rosa-choque”, por Vanessa Campos
Vanessa Campos, 49 anos, mulher, mãe, vive com HIV/AIDS há 31 anos. É representante estadual da RNP+ Amazonas, secretária nacional de informação e comunicação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+ Brasil) e idealizadora da fanpage Soroposidhiva.


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