Vanessa e Dara (foto: arquivo pessoal)

Por Vanessa Campos

Há momentos em nossas vidas que se caracterizam pela extrema fragilidade e, paradoxalmente, também por extrema resistência. O meu momento de dar à luz foi um exemplo deste paradoxo.

Costumo dizer que a discriminação é como um cão violento e faminto que sempre fareja o osso, por mais bem enterrado que ele esteja, e que não mede esforços para abocanhá-lo como um troféu. Assim caminhamos por esta vida, nós Pessoas Vivendo com HIV e AIDS, com ele em nosso encalço e precisamos ter essa estranha mania de ter fé na vida, fé na humanidade, fé no amor, fé na solidariedade, fé na compaixão, fé na verdade. Fé, fé, fé...

Já pararam para pensar que nós PVHA temos que aprender a driblar tudo o que mais afunda o ser humano?! Todos os dias de minha vida soropositHIVa têm sido assim!

Em 2001 eu passei pelo inferno dentro de uma maternidade. Será mesmo que precisava ser daquele jeito?!
Será que não deveria ser ali que eu tinha que ser mais respeitada e acolhida?!
Será que ali as pessoas não tinham o dever de saber como manejar a minha vulnerabilidade e me fazerem acreditar que há esperança de dias melhores?
Afinal, eu não era uma grávida como a maioria das que estavam ali, tinha um bichinho no meu corpo que me colocava num patamar de cuidado prioritário. Isso me faz lembrar que quanto maior a vulnerabilidade maior deve ser o cuidado. Mas, ao invés disso, usaram e abusaram da minha fragilidade para destilarem seu ódio, autoritarismo e preconceitos sobre mim.

 

“... Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.” (Índios, Renato Russo)

 

Respiro fundo... e continuo buscando as palavras para dividir com você alguns detalhes de quando tive minha filha mais nova, em 2001.

Conferi a bolsa com tudo que minha menina precisaria usar na maternidade, e também um kit diferenciado, que recebi na Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, chamado kit pré-parto anti-HIV, composto pelo xarope de AZT e ampola de AZT. E lá fui eu para a Maternidade Balbina Mestrinho (referência para as mulheres HIV+ em Manaus). Entrei no início da tarde, prontamente informei aos profissionais que vivo com HIV e entreguei o kit para que pudessem prepará-lo devidamente. Observei um alvoroço explícito entre a equipe e o vai e vem acompanhado sempre de muitas interrogações sobre a forma correta de manipular a medicação da ampola. Eu fiquei apreensiva porque estava óbvio que ninguém ali sabia como utilizar. Foram quase 3 horas de entra e sai, liga pra fulano, sicrano e beltrano... até que finalmente conseguiram utilizá-lo em mim. Meus temores cresciam, mas... ufa!!

Foram horas naquele pré-parto, até que à noite fui levada para a sala de cirurgia e minha linda menininha nasceu via cesariana. E lá estava eu no dia seguinte toda feliz da vida... mas não, espera aí!!! Eu estava muito preocupada, porque se toda a minha família tinha pleno conhecimento do HIV em minha vida, o mesmo eu não poderia dizer da família do pai das minhas filhas, pois ele jamais quis que ela soubesse. Então, eu vivia tendo que esconder isso, e minha cunhada tinha se disponibilizado para ficar comigo na enfermaria, na parte da manhã. Assim que pude, tratei de reforçar a situação para a enfermeira do plantão. Eu temia o constrangimento de revelarem minha sorologia. E logo ela chegou e, com muito carinho, foi vendo a necessidade de trocar a fralda descartável da bebê. Neste momento, a pediatra começou a fazer a ronda e deu um grito perguntando: “por que esta mulher está manipulando a criança sem usar luvas?!” Eu, ainda meio tonta, me apavorei e procurei com os olhos o socorro da enfermeira, que chegou em seguida. Ela também me acalmou os ânimos, pois, eu coloquei a médica pra correr e tive que inventar, para minha cunhada, que o motivo das luvas era uma suspeita de hepatite, e assim começou a primeira de uma série de humilhações às quais fui submetida.

Quando me levantei para tomar banho veio a dita enfermeira com uma garrafa de água sanitária e me disse: “você leva esta garrafa e, quando você estiver saindo do banheiro, desinfete o local que você utilizou”. Agora imaginem a cena: eu com um braço esticado com o soro e a outra mão carregando o suporte do soro pesado e sem rodinhas. Nem que eu quisesse levar a garrafa, não teria condição. Olhei fixamente para aquela mulher, engoli toda a minha fragilidade e disse pra ela enfiar a garrafa naquele lugar e fui em direção ao banheiro.

Cada segundo ali era um misto de apreensão e angústia. Os olhares furtivos, as luvas duplicadas que usavam quando vinham me atender e muitos outros detalhes, que nem vou descrever, materializavam o preconceito e o estigma da aids desabando sobre mim. Agradeci a Deus quando chegou o momento da alta. Enfim, eu iria para minha casa e poderia descansar. Passei na sala da assistente social pra pegar a caderneta de vacinação da minha filha. Imediatamente coloquei na bolsa, sem nem olhar nada e fui embora. Assim que cheguei em casa, tirei a caderneta da bolsa e recebi o golpe final daquela maternidade. Estava escrito na capa com letras garrafais: CRIANÇA FILHA DE MÃE HIV+.

Chamei o pai das minhas filhas, mostrei a caderneta e disse: me leva agora lá na maternidade!

Meus olhos ardiam com as lágrimas descendo e meu rosto parecia pegar fogo de tanto ódio e indignação.

Cheguei lá e já fui entrando sem dizer nada, enquanto o guarda tentava me barrar. Quando fiquei frente a assistente social, coloquei a caderneta na cara dela e gritei: troca agora essa caderneta!! A mulher ainda teve a pachorra de dizer que não podia trocar, e só tratou de providenciar a troca quando eu ameacei de ir à delegacia e chamar a imprensa.

Espero que muitos profissionais da área da saúde leiam, e possam guardar em seus corações o meu pedido: Observem a técnica, cumpram os protocolos necessários, mas, ao tocarem numa PVHA, respeitem sua vida e sejam, acima de tudo, uma alma tocando em outra alma.

 

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Eu e minha filha Dara ilustramos a campanha do Dia das Mães de 2017 do extinto DIAHV (Departamento de IST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde) fazendo de nossas dores a força para lutarmos contra estigma, preconceito e discriminação. Campanha feita numa época em que a gestão, sob o comando da Dra. Adele Benzaken, tinha um olhar humanizado, atento às demandas e diálogo aberto com o Movimento Social de Luta contra a Aids.

 

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Em 2018, o DIAHV também lançou a Campanha Indetectável divulgando o consenso científico I=I (Indetectável=Intransmissível): Quando a carga viral está indetectável o HIV não é transmissível sexualmente.

Fui uma das protagonistas desta campanha, na qual falo sobre adesão ao tratamento, direitos sexuais e reprodutivos das mulheres que vivem com HIV, luta pela dignidade e pelo direito de ser mãe (na foto abaixo).

Saiba mais detalhes sobre a declaração de consenso I=I no site da RNP+Brasil.

 

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Estar com a carga viral indetectável é a garantia de que podemos ter relações sexuais sem preservativo e sem o risco do HIV ser transmitido. Isso também significa que podemos planejar uma gravidez sem a necessidade de inseminação artificial. E sabia que, dependendo de várias outras questões obstétricas, também podemos ter a opção do parto natural? Pois é, a ciência evoluiu e isso deu mais qualidade de vida e autonomia para as PVHA planejarem seu futuro e realizarem seus sonhos.

 

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Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena
Acreditar no sonho que se tem
Ou que seus planos nunca vão dar certo
Ou que você nunca vai ser alguém
Tem gente que machuca os outros
Tem gente que não sabe amar
Mas eu sei que um dia a gente aprende
Se você quiser alguém em quem confiar
Confie em si mesmo
Quem acredita sempre alcança!
(Mais Uma Vez, Renato Russo)

“Cor de Rosa-choque”, por Vanessa Campos
Vanessa Campos, 49 anos, mulher, mãe, vive com HIV/AIDS há 31 anos. É representante estadual da RNP+ Amazonas, secretária nacional de informação e comunicação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+ Brasil) e idealizadora da fanpage Soroposidhiva.


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