Remando ao por do sol. Foto da internet

Por Beto Volpe

Há 31 anos eu passei pela pior experiência que um jovem poderia passar na década de 80: receber o diagnóstico reagente para o HIV. A primeira sensação que se instala é de um vazio absoluto, parece que tudo aquilo pelo que você lutou e planejou na vida foi pulverizado pelo medo, sem chances de recuperação. Era uma sensação de quase morte, perceptível em todos os momentos e situações. Contar para minha família que eu tinha um problema de saúde progressivo e fatal para o qual não havia tratamento, conviver com o preconceito de um tempo sem informações e contar os dias para o inevitável fim foram desafios difíceis de serem superados. A saída mais rápida e fácil me pareceu ser a solução, daí veio o abuso de cocaína e álcool que, juntamente a ação dos quase 8 bilhões de hivezinhos que nasciam diariamente em meu organismo, detonaram com minha imunidade. A hora estava chegando.

Sete anos após a infecção eu estava com praticamente zero de defesa imunológica e as oportunistas apareceram da forma mais inoportuna possível. A primeira foi uma pneumonia muito forte, quase um mês de internação e a presença cada vez mais forte da morte a meu lado. Depois vieram dois episódios de neurotoxoplasmose que começaram a comprometer a minha compreensão das coisas e também me fizeram parar de contar os dias, havia chegado a hora.

Nessa época havia sido descoberto nosso Santo Graal, o coquetel de medicamentos que conseguia diminuir a quantidade de vírus e elevar o nível de células de defesa, mas que não conseguiu impedir uma candidíase que ocupou todo meu aparelho digestivo e me tirou mais de 30 quilos em menos de um mês, o que levou meu médico a me declarar como paciente terminal para minha mãe. Graças à perícia da equipe médica e de enfermagem eu sobrevivi a uma terrível noite de três dias e me deu chances de sofrer um terceiro acidente cerebral por toxoplasmose que deixou meu lado direito completamente paralisado. A partir daí vieram as intermináveis sessões de fisioterapia, presentes há 21 anos em meu dia a dia, que me devolveram a mobilidade, apesar de reduzida na perna direita.

Mas os desafios não pararam aí, como em Desventuras em Série tive osteoporose diagnosticada através de uma fratura de fêmur e uma febre contínua começou a me assombrar até que o ectoplasma se materializou em forma de um linfoma situado na medula, pescoço, pulmão, baço, fígado, retroperitônio e virilha, uma festa para a cintilografia. Após quase um ano de tratamento quimioterápico entrei no período de controle, onde mais algumas fraturas aconteceram, próteses foram instaladas no meu quadril por conta da osteonecrose até que, por fim, tive alta, o câncer estava curado. Nem um ano havia se passado e outro diagnóstico de tumor, agora no reto, trouxe a tal que usa alfanje e anda encapuzada de volta ao meu cotidiano. Após quatro meses de insuportavelmente doloridas sessões de radioterapia, o controle e a cura.

Hoje, graças ao irrestrito apoio que sempre tive de minha família, a um plano de saúde que me disponibiliza aquilo que o SUS não fornece e, especialmente, a um coquetel de medicamentos que mantém minha carga viral indetectável há oito anos e elevou minha imunidade a níveis pra lá de normais, estou bem de saúde. Isso apesar de tomar uma bateria de medicamentos para hipertensão, diabetes, colesterol, triglicérides, arteriosclerose, osteoporose e refluxo, uma vez que minha idade biológica gira em torno dos 75 anos, segundo estudos internacionais sobre o envelhecimento precoce de pessoas com HIV.

Mas uma atitude que eu tomei, em especial, fez toda a diferença em minha vida: engajar-me no Movimento Nacional de Luta contra a AIDS. Tudo começou em uma sala de bate papo onde conheci alguns ativistas que amo e admiro muito até hoje, como Beatriz Pacheco e Rubens Raffo, que me conduziram ao meu primeiro Encontro Nacional de Pessoas com HIV, o Vivendo dos grupos Pela Vidda do Rio e de Niterói. Voltando de lá bem entusiasmado, juntamente com algumas pessoas vivendo com HIV fundei a ONG Hipupiara que se dedicava à luta contra a AIDS e conseguimos resultados fantásticos: a primeira academia de combate a efeitos colaterais em ONGs do Brasil, a conquista quase quixotesca de uma portaria regulamentando uma série de procedimentos estéticos e reparatórios da lipodistrofia e a defesa de uma tese sobre acesso a medicamentos de alto custo em audiência pública no Supremo Tribunal Federal, dentre várias atividades reconhecidas nacional e internacionalmente.

A convivência com pessoas nas mesmas condições e, junto com elas, brigar contra um inimigo supostamente mais poderoso me fez crescer muito como ser humano, tirou completamente o foco que eu mantinha em meu leonino umbigo e o lançou para o mundo que me cercava, que era muito maior, mais diverso e mais bonito do que o que eu conhecia. Por isso eu sugiro a todo mundo que vive com HIV e que está envolvido em grupos virtuais que se informe sobre algum núcleo da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS, do Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas, da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/AIDS e da Rede Nacional de Mulheres Travestis e Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/AIDS. Estamos organizados em todos os estados e em boa parte dos municípios. Certamente a maioria das pessoas já ouviu falar sobre os ranços do movimento, de que existem nichos impenetráveis e que impedem a participação de novos membros. Em parte isso é verdade, mas não é assim na maior parte dos lugares onde nos inserimos? Foi assim na escola, no primeiro emprego e é assim onde quer que seres humanos se reúnam.

O momento é pra lá de grave, teremos uma pós pandemia onde a grana que restar no país será insanamente disputada pelos ministérios e, vamos combinar, a Saúde nunca foi a mais bonita do baile. É hora de nos despirmos de nossos ranços interiores, de olhar em volta e reconhecer nos outros uma extensão de nós mesmos, há muito o movimento se ressente de novos membros que estejam dispostos a doar um pouco de seu tempo e de suas habilidades para a luta contra a AIDS. E, por mais que os grupos e as salas de bate papo sejam fortalecedores – e, por que não? – férteis em novos relacionamentos, é a articulação dessas pessoas em torno de nossa causa que cobra e fiscaliza os recursos necessários para manter nossos tratamentos e que nos dará a força que precisaremos quando a pandemia passar. É no ativismo que se formam laços de amizade baseados na afinidade e no desejo por um mundo melhor, como os que mantenho até hoje. Procure se informar sobre núcleos das redes citadas acima, integre o movimento de luta contra a AIDS e descubra um mundo repleto de informações, objetivos e acolhimento. O ativismo foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar.

Viva o Movimento Nacional de Luta contra a AIDS!

Viva a Vida!

“Carga Viral”, por Beto Volpe
Beto Volpe é ativista em Direitos Humanos, escritor, autor do livro "Morte e Vida PositHIVa" e colunista sobre HIV/AIDS em Saúde Pulsando


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