Foto: Esquerda.net

O que temos para comemorar no Dia Internacional das Prostitutas?[1]

Por Elisiane Pasini

Desde o começo dos anos noventa me dedico a estudar o trabalho sexual de mulheres cisgênero[2]. Foram anos dedicados nessa complexa trama da prostituição[3]. Tenho dito, que a Antropologia, a luta feminista e o trabalho no Ministério da Saúde me possibilitaram o privilégio de conviver, compartilhar a vida e fortalecer laços afetivos com muitas pessoas que realizam o trabalho sexual.  

Nesses anos todos eu me tornei uma voz junto às trabalhadoras e aos trabalhadores sexuais (TS), uma parceira, estudiosa, militante e incentivadora, entretanto, luto para que todas nós tenhamos o poder da fala, do protagonismo, da consciência política e da transformação social. Dessa forma, na minha estreia no Saúde Pulsando só poderia refletir sobre essa data comemorativa do 2 de junho, Dia Internacional da Prostituta, escutando as vozes das minhas amigas, parceiras e admiráveis trabalhadoras sexuais. Como elas têm me dito mais fortemente nos últimos meses: Nós existimos! É preciso protestar e romper com os silêncios e com a sociedade brasileira putofóbica. Vamos juntas.

Dia Internacional das Prostitutas
O Dia Internacional das Prostitutas é comemorado em todo o mundo no dia 2 de junho para relembrar a importante ocupação realizada por cerca de 100 prostitutas na Igreja Saint-Nizier em Lyon, na França. O ano era 1975 e essas corajosas prostitutas ocuparam essa Igreja como um ato de visibilizar as diferentes violências que vinham sendo vítimas; assédios policiais, fiscais e sociais. Fundamentalmente, as prostitutas protestaram contra o assédio policial, o fechamento de hotéis onde trabalhavam e uma série de assassinatos brutais que estavam ocorrendo e que não eram resolvidos. A ocupação durou mais de uma semana e durante esse tempo elas falaram sobre suas histórias pessoais, seus relacionamentos com a sociedade, suas condições de trabalho e suas demandas. A manifestação terminou quando todas foram expulsas pela polícia. Entretanto, durante esse tempo a imprensa francesa noticiou o evento de forma efetiva, mostrando tanto as prostitutas como as pessoas em torno da Igreja, que acompanharam a ocupação demostrando apoio ou não. Essa primeira ocupação resultou em outras, espalhadas pela França. Além disso, a sociedade começou a conhecer melhor a realidade das violências que as prostitutas sofriam e a luta pelos seus direitos foi se fortalecendo. Assim, as corajosas prostitutas de Lyon inauguraram o movimento contemporâneo e organizado das prostitutas. Em reconhecimento desse momento histórico, da luta e da coragem dessas mulheres, o dia 2 de junho foi declarado mundialmente como o Dia Internacional da Prostituta (cf. JAGET, 1975; MATHIEU, 1999).

No Brasil, os movimentos das profissionais do sexo atuam há mais de 30 anos[4] na luta pelo reconhecimento do seu trabalho e de sua cidadania[5]. Nessa trajetória positiva e cheia de lutas por garantir seus direitos foram criadas muitas associações e redes nacionais. A primeira delas foi a Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), criada em 1987 durante o I Encontro Nacional de Prostitutas. Em 2008 se formou a Federação Nacional de Trabalhadoras Sexuais (FNTS), mas atualmente ela não tem mais atuação. A Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS) foi criada no final do ano de 2015 e, no ano seguinte, 2016, foi lançada a Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (ANPS).

Neste artigo não pretendo elaborar um resgaste histórico do movimento brasileiro de prostitutas e, muito menos, das comemorações referentes a data do 2 de junho, no Brasil[6]. Entretanto, é importante ressaltar algumas ações importantes, que aconteceram no passado. Em 2003, o GAPA-RS (Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS), importante instituição que sempre esteve ao lado das lutas e das pessoas mais vulnerabilizadas e que vinha atuando junto as trabalhadoras sexuais lançou um card, que destacava o Dia Internacional da Prostituta (ver matéria no Saúde Pulsando) e a luta pela garantia dos direitos e o respeito a autonomia das prostitutas. Em 2005, a ONG APROS PB (Associação de Profissionais do Sexo da Paraíba), sediada na cidade de João Pessoa, começou a comemorar a data com um projeto intitulado “Somos o que Somos”, que aconteceu durante muitos anos. Inclusive, foi nesse evento que se criou a famosa “Corrida da Calcinha” em que as pessoas corriam usando uma calcinha na cabeça com o intuito de visibilizar um produto importante para a prostituição. Nos últimos anos, Luza da Silva, Presidente da Associação, conta que já não tinha mais financiamento, o que impossibilitou realizar grandes comemorações. Também em outros Estados aconteceu a comemoração, como, por exemplo no Rio de Janeiro, Natal, Belo Horizonte e em tantos outros. Em 2012, o GEMPAC (Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará) realizou o “Puta Dei, uma atividade de comemoração e de visibilização das pautas políticas das trabalhadoras sexuais. Lurdes Barreto, fundadora da RBP e do Gempac afirma que o “Puta Dei” é um evento de incidência política, que busca dar vozes às trabalhadoras sexuais promovendo diversão e visibilidade. Nos últimos anos, este evento também ocorreu em outras cidades brasileiras com festa, arte e reivindicações de cidadania, dignidade e direitos.

Também é interessante resgatar a histórica personagem criada pelo DIAHV[7]: “Maria Sem Vergonha”. A personagem fazia parte de um grande projeto que tinha entre outros objetivos reconhecer a importância das prostitutas na construção das políticas de prevenção e o mapeamento e a formação de novas associações de prostitutas. A personagem da foi ícone das trabalhadoras sexuais durante muito tempo. Segundo Guerra:

A partir das discussões desenvolvidas no Seminário Nacional Aids e Prostituição, a campanha “Sem Vergonha Garota, Você tem Profissão”, elaborou uma nova forma para discutir a prostituição. Nesta campanha, foi incorporada a ideia da prostituição como “profissão”, mediante a difusão de materiais que enfatizavam a construção da autoestima da prostituta com dizeres “sem vergonha de”, “lutar pelos seus direitos”, “valorizar seu trabalho”. No conjunto dos materiais que compunham essa campanha havia cartilhas, adesivos, um spot sonoro na voz de Reginaldo Rossi e um manual para profissionais da saúde e para as profissionais do sexo. (GUERRA, pg. 99, 2019).

Inclusive, em 2018, a “Maria Sem Vergonha” foi revisitada trazendo a pluralidade necessária para dialogar e resgatar o pertencimento das trabalhadoras sexuais junto a personagem. A comemoração do dia 2 de junho foi destaque nas redes midiáticas do DIAHV durante muitos anos. Entretanto, em 2018 a homenagem no site do Departamento foi realizada, mas usando a campanha do ano anterior e nada foi dito no ano passado.

Outro momento de destaque foi a homenagem dessa data no ano de 2013. Durante o mês de março daquele ano, na busca de uma retomada das relações com as ONGs de trabalhadoras sexuais, visto que a RBP havia rompido com o MS, o DIAHV realizou uma oficina de comunicação com representantes de diversas ONG do País. No dia 2 de junho de 2013 foi realizada uma pequena homenagem, não uma campanha, para comemorar a data. Uma ideia simples e que partiu do próprio grupo das TS, que era falar de saúde, de prevenção e da prostituição de uma maneira positiva e que comunicasse nos seus grupos. Um dos cartazes trazia a frase “Eu sou feliz sendo Prostituta”. Infelizmente, esse produto foi censurado pelo Governo, resultando na demissão do Diretor. Diante de tal contexto, foram muitos os protestos demonstrando as já enormes ambiguidades que vivíamos no Brasil.

O que temos para comemorar?
Os anos passaram e aqui estamos em 2020! Um ano que além de uma pandemia que assola o mundo, no Brasil ainda temos um Governo Federal que não governa em prol da saúde e para todas as pessoas. Portanto, tenho me questionado: o que podemos comemorar nesse 2 de junho? Aliás, “comemorar” não remete somente a festejos mas, também, a uma maneira de homenagear, de trazer à memória, de recordar. Desta forma, com essas reflexões na mão, eu conversei com nove trabalhadoras sexuais, mulheres cisgênero, transexuais e travestis, de diferentes regiões do país. Nossas conversas aconteceram pelo whatsapp, durante os dias 28 a 31 de maio.

A primeira certeza que tive nessas conversas é que apesar de todos os problemas que as pessoas que realizam a prostituição têm passado, o dia 2 de junho, mesmo com dificuldades de se poder comemorar, é uma data de extrema importância. Várias delas me falaram que o dia das prostitutas é dia de lutas! Em todas as falas das TS com quem conversei elas evidenciaram a enorme dificuldade de comemorar essa data, visto o tempo trágico que estamos vivendo. Vejamos alguns relatos importantes:

Lis, não temos muita coisa para comemorar! O mundo todo está passando por grandes dificuldades, grandes perdas. O momento não é de comemoração. O que podemos fazer agora é refletir, acreditar em uma renovação. As prostitutas precisam refletir sobre como essa pandemia também nos atingiu. Não dá para comemorar o 2 de junho, pois estamos agora em uma correria para salvar vidas. (Maria de Jesus, Coordenadora da APROSMA – Associação das Prostitutas do Maranhão, integrante da Rede Brasileira de Prostitutas).

O que se pode comemorar ainda? Acho que nem aniversário, né? Sinceramente, o que está acontecendo é muito grave. Poucas coisas me abalaram tanto na vida... e olha, com tudo que eu já passei, a Ditadura, fui presa, mas tudo isso até parece café pequeno. Nesse momento, eu estava pensando, que não tem nada para comemorar. Todas estão passando por muitas dificuldades, a mais bonita, a do norte, do sul, a mais rica... o mundo está um caos. [...] O Dia Internacional da Prostituta, acho que esse ano será triste. Espero que isso melhore! E para nós, prostitutas, e também quero falar dos homens que fazem prostituição, que se cuidem e fiquem fortes para suportar as dificuldades que ainda virão pela frente. (Marcely Malta, Vice-presidenta da Rede Trans Brasil e Coordenadora Geral da Igualdade RS - Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul).

Comemorar? Meu amor, nem no Brasil e nem no mundo. É bem difícil, viu? Nos anos anteriores que não tinha pandemia já não tínhamos muito o que comemorar, quem dirá agora. Lis, mas que conversa difícil essa tua. (Diana Soares, Coordenadora da ANPS – Articulação Nacional de Profissionais do Sexo e Coordenadora da ASPRORN – Associação das Prostitutas do Rio Grande do Norte).

É um dia de comemoração, um dia de uma grande história das prostitutas, um dia fundamental para que nós possamos refletir como podemos continuar na caminhada por direitos, por cidadania, pela questão da luta ao HIV/Aids. (...) Essa crise sanitária deixa uma mensagem muito ruim e forte, que está dentro de uma concepção de sociedade, que é uma sociedade ainda preconceituosa, falsa e moralista. As prostitutas estão sofrendo muito porque trabalham com o corpo, falando, abraçando. Tem sido difícil! (Lourdes Barreto, Fundadora da RBP, do Gempac e Conselheira Nacional dos Direitos das Mulheres).

Ao mesmo tempo, existe um sentimento de que esse dia possa se tornar também um marco para redobrar a força, pautar as lutas e, fundamentalmente, destacar a sororidade entre as pessoas que realizam o trabalho sexual e suas parcerias.

Então, eu diria que a comemoração no 2 de junho e só pela solidariedade entre nós. Todo dia tenho mais energias quando vejo minhas colegas melhores. (Célia Gomes, Coordenadora da CUTS – Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais e Coordenadora da APROSPI – Associação das Prostitutas do Piauí).

Uma coisa positiva foi a sororidade entre nós. Eu achava que não existia mais. Mas, nesse momento, ninguém largou a mão de ninguém. Isso foi bonito! Mesmo de longe as colegas continuaram juntas, se ajudando. (Diana Soares, Coordenadora da ANPS e Coordenadora da ASPRORN).

A resilência é uma característica nossa que é muito forte. (...) De verdade, a resiliência é mesmo a única coisa que se tem para comemorar agora!!! (Aline Lopez, integrante da ANPS).

É preciso lembrar que a luta das prostitutas pela garantia de direitos e dignidade é diária e muita vezes silenciosa, no entanto, elas não estão paradas. Vânia ressalta que:

Temos coisas para comemorar, sim. Pouquíssimas. Tímidas. (...) O que eu vejo hoje, depois de 48 anos de prostituição é que a nossa vida melhorou bastante, muito por conta do nosso movimento e da nossa garra. Antigamente, quando a gente estava na rua a policia chegava, metia o pau e colocava a gente numa cadeia, ali a gente tinha que fazer sexo de graça e eles ficavam com nosso dinheiro. No outro dia a gente tinha que fazer a faxina e depois mandavam a gente para casa. Hoje eles até podem fazer, mas a gente corre atrás dos nossos direitos e eles vão pagar por isso. Outro ponto é que a prostituição é considerada como ocupação. Temos uma bandeira, que fomos nós que criamos, temos um hino, que a gente criou, uma carta de princípios. Acho que a gente teve avanços, mas são tímidos. (...) Nós temos que continuar lutando e acredito ainda que seremos vistas como gente!! (Vânia da Silva, Coordenadora da Associação Pernambucana de Profissionais do Sexo (APPS) e integrante da RBP).

Outro tema relevante em nossas conversas sobre o Dia Internacional da Prostituta foi a enorme invisibilidade das TS para o Governo Brasileiro. Primeiramente, elas fizeram inúmeras críticas ao governo federal, mas também ressaltaram que os governos estaduais e municipais pouco têm dialogado com elas. Verdadeiramente, o Estado não tem buscado soluções e nada tem contribuído para a sobrevivência das TS.

No meu ponto de vista, de 2019 a 2020 teve muito retrocesso na vida das TS. Um deles foi o fato de não estarmos mais incluídas na agenda do DCCI. Parece que não somos mais vulnerabilizadas pela sociedade e um grupo importante na luta contra as IST, o HIV/Aids e as HV. Ainda é necessária uma política voltada para nós mas, infelizmente, esse governo nos tirou da agenda. Nós temos lutado muito para que eles nos respeitem e entendam que nós temos uma profissão e que essa profissão exige muito do nosso mental, do nosso corpo, da nossa saúde. (...) A pandemia trouxe a ajuda de muitos lugares não governamentais, de parceiros, pessoas que conhecem nossas ações, das associações e das redes. A gente percebe que durante a Pandemia nós não tivemos um olhar para as TS, mesmo sabendo que elas necessitam desse trabalho e que estavam impossibilitadas de trabalhar, pelo contato pessoal. Entretanto, o governo não pensou em nós. Como se a gente não existisse, mas nós estamos aí, gritando que existimos. Nós estamos tentando nos apoiar, nossos pares, com cestas básicas, máscaras e álcool gel. As associações estão fazendo o papel do governo, tanto federal, como estadual e municipal! (...) As associações não conseguem assegurar para todas as companheiras a comida para elas e para a família, mais o aluguel, água, luz. (Célia Gomes).

Aqui em Sergipe a situação está cada dia pior. Eu ando com muito medo. O que eu posso fazer para me proteger e proteger as companheiras, eu estou fazendo. As TS nem são mais consideradas um grupo vulnerável para o Governo Federal, pois nos deixaram de fora das ações para as populações. Ninguém fala sobre a TS. Só as ativistas que falam. Infelizmente, algumas colegas não saíram da rua, pois não tinham outra maneira de se sustentar. Esse benefício emergencial do governo algumas conseguiram, mas outras, não. Só que esse beneficio não sustenta uma família, aliás, muitas vezes é o trabalhado sexual que sustenta. Muitas estão sendo despejadas dos hotéis que moram, pois é aí que aparece muita gente desumana. Nós queremos ajudar todas, mas nós também precisamos ser ajudadas. Como é possível fazer? É uma situação desesperadora. Eu ando muito desesperada. Só encontramos promessas do governo. As colegas ficam ligando, eu perdi sono, eu perdi fome, sem saber como ajudar. (...) Como será no mês que vai entrar? Só que eu não consigo ajudar todas. Meu sonho era que os governos federal, estaduais e municipais nos apoiassem. Que olhassem, que vissem as TS com outros olhos, que enxergassem como seres humanos, como um grupo que precisa de ajuda por que elas estão correndo muito riscos indo trabalhar, mas elas não podem ficar em casa de braços cruzados vendo suas famílias passar fome. Está complicado! (Irene Santos, Coordenadora da ASTRASSE – Associação das Trabalhadoras do Sexo de Sergipe e integrante da CUTS).

Marcely também destaca ainda o fato de que o governo não tem contribuído para a população das travestis e transexuais. Ela me fala enfaticamente: Então, Lis, a gente tem que comemorar no sentido de reivindicar, que o governo olhe para nossa população, que é tão discriminada. Ainda hoje se falar a palavra prostituta parece que é algo de outro mundo, mas todo mundo faz uso do nosso trabalho. No final, as estratégias de apoio estão sendo realizadas por entidades e pessoas parcerias em uma luta incansável das associações. É a sociedade civil fazendo o trabalho do Estado. É revoltante que as trabalhadoras sexuais contem apenas com a ajuda da comunidade e das associações.

Nesse sentido, Aline também ressalta que ela tem estado mais preocupada em ajudar suas colegas com um olhar mais cuidadoso em relação as violências que elas estão vivendo. Inclusive, muito tem se falado do quanto as mulheres têm sofrido mais violências nesses tempos de pandemia, entretanto, não se fala da violência contra as pessoas que realizam a prostituição. Aliás, nem agora, nem antes.

Eu estava conversando com outras jovens TS. A luta contra a violência tem sido muito presente. Tenho achado que isso está mais presente do que a falta de clientes, a conversa sobre o movimento que caiu. Tem acontecido muita violência! (...) Parar de trabalhar não dá, né, Lis? Não tem como, mas as colegas estão se cuidando muito, as medidas preventivas que todas conhecemos, banho, álcool gel, sem beijinho. A gente tem que se adaptar como todo mundo. O risco existe. Não posso falar que os relatos sobre quem está na rua são relatos de putas tranquilas e felizes, mas é preciso trabalhar. A violência anda aumentando muito. O estigma não está nem perto de diminuir. E a união também é importante, nós temos ajudado muito uma a outra. (Aline Lopez, integrante da ANPS).

Junto a discussão sobre violências, várias TS com quem conversei também lembraram que estão com muitos problemas em relação ao recebimento dos insumos de prevenção. Parece que nesse tempo da Pandemia do Coronavírus, as pessoas pararam de transar e não precisam mais fazer prevenção. Celia Gomes ressalta que estamos com dificuldade de conseguirmos os insumos de prevenção de IST, Aids e HV. Isso é um horror! Afinal, algumas TS precisam fazer programa, mesmo usando máscaras e tendo os cuidados necessários. Elas precisam sobreviver.

Efetivamente, sabemos que o Coronavírus[8] mudou e ainda mudará as práticas cotidianas em todo o mundo (para o bem e para o mal), mas isso não significa que todas as questões de saúde sejam deixadas de lado. Mais uma vez, é preciso ressaltar que a saúde de um é também a saúde do outro.

Mais uma vez, o que vemos é que o trabalho sexual continua sofrendo pelo estigma social, pela falta de regulamentação da atividade e pela escassez de políticas públicas voltadas para seu grupo. As trabalhadoras sexuais com quem conversei continuam demandando por justiça econômica e social. Essa é a principal comemoração, a luta pelo direito de realizar o trabalho sexual com dignidade e segurança.

A luta continua...
Hoje é o Dia Internacional das Prostitutas! Que o dia sirva para visibilizar para todo o mundo que todas as pessoas que fazem o trabalho sexual devem ter seus direitos garantidos e que devem ser respeitadas. Direito em exercer seu trabalho, direito de ser sujeito de Políticas Públicas, direitos de cidadã. Que sirva para mostrar que as TS são protagonistas e sujeitas de suas histórias. Um dia de enfrentamento ao preconceito, ao estigma, a putafobia e todas as formas de violências contra as trabalhadoras e trabalhadores sexuais!

Então, vamos juntas e juntos escutar suas vozes, visibilizar seus embates e reforçar seus direitos. Elas existem e resistem. Vamos juntas!

 


[1] Dedico este artigo a todas as pessoas que realizam o trabalho sexual e que foram vítimas do Coronavírus. Essa pandemia que assola o mundo todo e que reforça as enormes diferenças de classe, de raça, de gênero, de profissão e geográficas.

2 Na maior parte do tempo trabalhei com mulheres cisgênero, que realizam o trabalho sexual. Entretanto, nos últimos anos, tenho atuado também junto às pessoas transexuais e travestis. No texto, na maioria das vezes, ao me referir às “mulheres”, estarei me referindo às mulheres cisgêneras, transexuais e travestis.

3 Como será possível observar no texto há diferentes termos para se referir à prostituição. Apesar de compreender as diferenças nas nomenclaturas, neste artigo, são usadas como sinônimos. Prefiro o uso do termo trabalho sexual, por entender uma maior abrangência.

4 O I Encontro Nacional de Prostitutas ocorreu em 1987. Desde então, o movimento de prostitutas realizou outros cinco encontros intitulados como nacionais, que foram: II Encontro Nacional de Prostitutas/1989; III Encontro Nacional de Prostitutas/1993; IV Encontro Nacional de Prostitutas/2008; V Encontro Nacional de Prostitutas/2010 e VI Encontro Nacional de Prostitutas/2017. A partir 2018, os eventos começaram a se chamar de seminários nacionais. Ao mesmo tempo, aconteceram inúmeros outros eventos municipais e regionais.

5 Desde 2002, a prostituição consta na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) como um ofício legal, sob o código CBO 5198-05 reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

6 Ver mais detalhes em Guerra, Carolina, 2019.

7 Em 2019 o Departamento mudou de nomenclatura, atualmente Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Entretanto, por respeito a história e por desacordo a mudança, eu chamarei pelo antigo nome.

[8] Ver mais detalhes em PASINI, Elisiane. Nós existimos: Reflexões sobre o trabalho sexual e o COVID-19 no Brasil. Publicado em www.viomundo.com.br, 2020.

 

Referências Bibliográficas

GUERRA, Carolina B. “Mulher da Vida, É Preciso Falar”: um estudo do movimento organizado de trabalhadoras sexuais. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2019.

JAGET, Claude. Une vie de putain. Editions Les presses d'aujourd'hui, collection La France Sauvage. 1975.

MATHIEU, Lilian. Une mobilisation improbable: l'occupation de l'église Saint-Nizier par les prostituées lyonnaise. Revue française de sociologie, nos 40-3. 1999.

ROUSSOPOULES, Carole. Les prostituées de Lyon parlent. Documentaire. Production Video Out. 1975.

“Vozes da Prostituição”, por Elisiane Pasini
Elisiane Pasini é Doutora em Antropologia e ativista feminista. Consultora no antigo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV)/Ministério da Saúde (MS) durante os anos de 2012 a 2018. Perita Júnior Local do Projeto “Apoio aos Diálogos Setoriais UE-Brasil - Fase IV” coordenado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) e pela União Europeia (UE), no ano de 2019.


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