Mortes evitáveis: qual a nossa responsabilidade?

O ativista, psicólogo e escritor Salvador Corrêa (Arquivo pessoal)

Quando a morte é evitável, a responsabilidade é necessariamente coletiva 

Por Salvador Campos Corrêa (*)

Esta não é exatamente uma questão recente, pois já lidamos com uma estrutura que mata algumas pessoas por serem negras, LGBTQIA+, mulheres, imigrantes, indígenas e outras populações há muitos anos no mundo. Obviamente, isso não ocorre na proporção genocida do projeto necropolítico em curso, mas os sinais já estavam aí e também alimentavam-se de nossa frieza diante dos quarentenados socialmente, como por exemplo a população em situação de rua, como lembra Boaventura de Sousa Santos.

Vivemos em uma sociedade assassina. Matamos uns aos outros com consentimento e financiamento social há muitos e muitos anos. Basta olhar para nosso aparelho estatal do que chamamos de segurança para citar um exemplo. Mas, poderíamos também pensar em diversas outras ações como as nossas escolhas na alocação de recursos na saúde,  educação, assistência social. Não se trata de ser direita ou esquerda. Nem mesmo comunista, liberal, neoliberal ou socialista. O que está em curso não dá mais e o recado vem da Terra. Nós é que estamos ameaçados de extinção. Comemos o próprio planeta, como diria o Krenak e o planeta continua a ensinar que não é mais assim. Terra que somos, temos a possibilidade de cuidar e transformar nossas partes, mesmo as mais desafiadoras.

Não há possibilidade de viver mais no caminho da autodestruição. Ou acabou ou acabamos: simples assim. Precisamos frear a construção da ignorância produzida para fins estratégicos com pedagogias acríticas criadas para fornecer ilusão e dificultar uma tomada de consciência, como aponta Richard Parker. 

Movimentos sociais denunciam essas graves violências políticas e estruturais há anos. Buscam e experimentam incansáveis formas de transformações sociais e criam movimentações sociais. A academia traz teorias, a arte impulsiona a transformação em outros tempos. A transformação está ocorrendo. Conquistas históricas para diversas populações estão em curso. Ver pessoas negras em propagandas, times de futebol trabalhando a temática LGBTQIA+ e vereadoras travestis e trans sendo eleitas é um pouco da ponta desse iceberg de transformações sociais em curso. 

Temos a urgência de não desistirmos de nós coletivamente e também individualmente. É difícil demais ler os jornais todos os dias, e, principalmente, lidar com tantos lutos de forma tão intensa e cruel. Nada em palavras é capaz de descrever a ausência que isso traz, o vazio, a dor, o silenciamento sangrento que isso representa. É duro, mas é preciso olhar para isso todos os dias. É necessário sentir.

Cada morte evitável é um pouco de nós que morremos numa esfera muito intensa: morremos socialmente. Não é admissível morrer em tempos de vacina! A morte social precisa despertar em nós a urgência da vida, para não trilharmos o caminho da auto-extinção social, pois matamo-nos coletivamente e, na ignorância dos fatos, fortalecemos a ilusão de que somos indivíduos em corpos isolados, quando a vitalidade maior é o corpo social. Como diria o poeta, "é impossível ser feliz sozinho". 

Toda morte evitável é necessariamente uma morte de todos nós. Precisamos renascer socialmente por todos os que foram afetados pela produção de políticas de morte. Especialmente agora, a todas as famílias que passaram por isso, pelo abraço não dado, a lembrança do sorriso interrompido, o amor barrado jamais terá algum preço que poderemos ressarcir a essas pessoas. Todas elas devem receber, sem exceção, todos os cuidados  financiados pelo Estado por termos permitido que isso acontecesse. O Estado precisa arcar com todas as consequências das (ausências de) políticas que mataram pessoas. Elas precisam ser sempre lembradas.

Mais do que nunca a necropolítica precisa morrer. A política do renascimento veio para ficar e não há mais retorno. É preciso ser para renascer, como informa a escritora Ana Vitória Vieira Monteiro! Isso inclui acreditar, sentir, viver, escolher, re-existir. Chegou o tempo de transformar nossas mazelas sociais. Que possamos renascer, sendo, numa força maior, na coletividade que nos constrói, na fluidez da vida. Como a natureza ensina, integrando-nos, nas diversas idades que somos.

Salvador Campos Corrêa é psicólogo, escritor e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids no Rio de Janeiro (RNP+RJ).

 

Referências
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Companhia das Letras. São Paulo, 2020.

PARKER, Richard. Covid-19 e a produção da ignorância. ABIA. Rio de Janeiro, 2021 Disponível em: https://abiaids.org.br/covid-19-e-a-producao-da-ignorancia/34672. Acesso em 20/Maio/2021.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Boitempo. São Paulo, 2020.

Compartilhe nas redes sociais: