Os aprendizados na gestão da resposta à epidemia de HIV/AIDS e a Pandemia pela COVID-19

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The lessons learned in managing the response to the HIV / AIDS epidemic and the Pandemic by COVID-19

Por: Vilma A. Cervantes, Jean Carlos de Oliveira Dantas, Rosa Alencar Souza, Maria Clara Gianna, Sonia Souza Pizarro, Mara Cristina Vilela, Artur O. Kalichman, Alexandre Gonçalves
Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS (CRT). Coordenadoria de Controle de Doenças (CCD). Secretaria de Estado da Saúde. São Paulo – Brasil.

 

CONTEXTUALIZAÇÃO
A AIDS foi a última pandemia que ocorreu no século XX; aprendemos muito nestes anos e continuamos a aprender. Nos primeiros casos no início dos anos 1980 nos deparamos com dúvidas sobre o agente, sua origem, como se dava a transmissão e a ocorrência de quadro clínico. Muito semelhante ao que nos deparamos em tempos de COVID. Profissionais de saúde totalmente paramentados para entrar no quarto dos primeiros pacientes, EPI sendo valorizados e exigidos como nesta nova pandemia. Profissionais de saúde que cuidavam dos primeiros casos de AIDS sendo vítimas de preconceito como observamos hoje, em algumas situações, profissionais de saúde não sendo bem vindos por absoluta falta de solidariedade com o outro. No caso da AIDS alguns anos foram necessários para a descoberta do agente causal, a definição das formas de transmissão e a descrição do quadro clínico. Em tempos de COVID foram questões de dias, vivemos em outro momento onde a globalização e avanço tecnológico permitiram que várias respostas pudessem surgir em tempo recorde. O coronavírus SARS-CoV-2, considerando a sua transmissão respiratória, conseguiu se espalhar muito mais rapidamente nas localidades e países, além da grande facilidade de meios de transporte entre os continentes. 

Se para a doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, a COVID-19, todos os avanços no conhecimento se deram de forma tão rápida a resposta para o controle também exige a agilidade.

Quando o SUS passa a ter maior visibilidade, pois quase 80% da população brasileira depende exclusivamente dele, suas fragilidades no acesso ficam evidentes, a desigualdade social em saúde torna-se evidente.

Em recente publicação no periódico BMJ Global Health (Dheepa Rajan et al, 2019) identificam oito principais fragilidades na resposta da governança à COVID-19 entre vários países analisados. Esta publicação foi inspiradora e nos remeteu às várias lições aprendidas no enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS que nos permitiram uma definição programática que logrou ao Brasil o status de referência mundial nesta resposta.

Assim como na pandemia de COVID-19, o surgimento dos casos de AIDS no Brasil, mais particularmente na cidade de São Paulo onde foram identificados os primeiros casos, foi marcado pelo grande desconhecimento sobre a transmissão, manifestação clínica, diagnóstico e evolução da doença.  Esta inusitada situação demandou que a assistência e as medidas de prevenção fossem organizadas em paralelo ao surgimento dos novos conhecimentos produzido pela comunidade científica, profissionais de saúde e ativistas do movimento social.

Uma característica marcante na resposta à epidemia de HIV/AIDS foi a mobilização e o protagonismo que as pessoas afetadas e a sociedade civil interessada tiveram desde o início da resposta, imprimindo uma agilidade e visibilidade tanto na produção do conhecimento quanto na organização da atenção inéditas quando comparados a outros agravos de saúde.

Ainda nos primeiros anos da epidemia o Programa Estadual paulista de AIDS, instituído em 1983, realizou reuniões públicas e abertas para discutir a nova doença com a comunidade. Participantes desses encontros resolveram criar a primeira Organização Não Governamental de AIDS (ONG). Nesta mesma década, a Travesti Brenda Lee declara à imprensa que abrigará travestis com AIDS em sua casa, Palácio das Princesas, que viria a ser a primeira Casa de Apoio às Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (PVHA).

Outro aspecto marcante, desde os primeiros casos, foram o preconceito e a discriminação dirigido tanto às pessoas LGBT quanto àquelas com a doença, que foram rotulados como pertencentes aos “grupos de risco”.

Na atual pandemia pela COVID-19 vimos ressurgir o termo “grupo de risco” o qual, assim como no passado da epidemia por HIV/AIDS, não contribui para que a sociedade como um todo adote as medidas de prevenção por reforçar a percepção que o problema é do outro e não de todos.

Tanto o preconceito e a discriminação quanto a desinformação estimulada pela adoção do termo “grupo de risco” levaram a explosão dos casos de AIDS em pessoas que desconheciam ou não admitiam seus riscos e vulnerabilidades. Este fato representou um grande obstáculo à adesão as medidas de prevenção e cuidado na epidemia de HIV/AIDS.

A adoção do conceito de vulnerabilidade possibilitou identificar práticas que estavam associados a contextos relacionados ao acesso e qualidade dos serviços de saúde e situações de exclusão devido às condições socioeconômicas, raça/cor, gênero e orientação sexual. Este entendimento orientou o trabalho ancorado no princípio da equidade, onde mais ofertas são dirigidas a quem mais precisa.

No campo da prevenção à infecção pelo HIV, aprendemos a valorizar e incluir a diversidade de cor, gênero e sexualidade e o conceito de vulnerabilidade nas políticas públicas para o enfrentamento.  Na atual pandemia pela COVID-19 é fundamental estabelecer estratégias claras dirigidas às populações mais vulneráveis, como aquelas residentes em comunidades, pessoas em situação de rua, aquelas em situação socioeconômicas precárias que tem dificuldade em aderir ao isolamento social considerando que lhes faltam apoio financeiro para subsistência.

Assim como aprendemos que era necessário dar acesso aos insumos de prevenção da infecção pelo HIV, como distribuir gratuitamente e para além dos serviços de saúde os preservativos, é necessário a ampla distribuição de insumos como sabão, desinfetantes e máscaras caseiras para favorecer a adesão às medidas de controle da COVID-19 para as populações mais vulneráveis.

Outro aprendizado da epidemia de HIV/AIDS é que culpar e tentar envergonhar as pessoas pela transmissão não é uma intervenção efetiva em saúde pública. Não funcionou com a população LGBT, apontando a necessidade de incluir as pessoas afetadas na construção das políticas públicas.  

A necessidade de ampliar a oferta de diagnóstico para identificar e conhecer quem são as pessoas com infecção e a doença mobilizou a comunidade científica, dos programas e da sociedade civil organizada, em especial no final da década de 1990 e início dos anos 2000. O desenvolvimento de tecnologias rápidas para ampliar o acesso a todas as PVHA também foi crucial para o enfrentamento da epidemia HIV/AIDS.

Outro aspecto relevante no enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS foi o trabalho articulado entre a sociedade civil e Programas de Infeções Sexualmente Transmissíveis IST/AIDS, apesar de uma grande mobilização da sociedade civil e ONG na resposta a COVID-19 na área social parece não haver uma articulação consistente entre estas ações e aquelas decorrentes das políticas governamentais.

A articulação de várias áreas de atuação governamental, sociedade civil organizada, as pessoas afetadas, a universidade e a iniciativa privada foram cruciais para o enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS, um aprendizado para por em prática nesta atual crise sanitária sem precedente.

O Brasil apresentou até o dia 30 de junho de 2020, período de 4 meses da ocorrência dos primeiros casos de COVID-19, 1.408.485 casos e 59.656 óbitos relacionados a doença. Segundo dados do Boletim Epidemiológico de HIV - AIDS do Ministério da Saúde até hoje, 40 anos de epidemia de AIDS, não atingimos número semelhante de casos e no ano 1998 o mesmo número de óbitos foi atingido em São Paulo 18 anos após o início da epidemia. Ressalte-se que a velocidade de transmissão da COVID-19 é diferenciada, considerando a sua forma de propagação, mas a comparação aqui apontada pretende contextualizar a dimensão do problema atual. 

Sem diagnóstico ou tratamento, entre a infecção pelo HIV e o desenvolvimento de um quadro de AIDS se passam em média 8 anos e mais de 99% dos infectados morreriam da doença. Entre os infectados pelo SARS-CoV-2, também um retrovírus como o HIV, estima-se que menos de 1% deve morrer pela infecção, o quadro clínico se complica em média em torno do oitavo dia e não do oitavo ano, e 99% dos infectados serão na sua maioria assintomáticos ou terão quadros leves e moderados da doença.

Ainda assim, devido a sua propagação rápida e avassaladora, a COVID 19 no Brasil já é hoje a principal causa de morte tendo ultrapassado inclusive aquelas anualmente relacionadas a problemas cardiovasculares e doenças crônico degenerativas.

Sem medidas de prevenção eficazes (quarentena, uso de máscaras, afastamento social, testagem, acolhimento e cuidado dos infectados e bloqueio e isolamento dos contatos), o esgotamento da capacidade de atendimento, principalmente em leitos de Unidade de Terapia Intensiva – UTI pode levar essa taxa de mortalidade para níveis ainda mais altos pelo não acesso daqueles que precisam de tecnologias mais avançadas de suporte de vida.

 

PLANEJAMENTO DA RESPOSTA
A epidemia de AIDS surgiu no Brasil em um contexto político distinto do encontrado hoje. O País estava em plena abertura da democracia. Os grupos sociais se empoderavam dos seus direitos e os gestores estavam abertos à escuta destes grupos.

A formulação da resposta a AIDS em São Paulo encontrou um cenário semelhante ao observado quando da chegada da pandemia de COVID 19, com velocidade diferente. Não havia medicamento comprovadamente eficaz, o vírus era desconhecido, escassez de testes para se conhecer a realidade epidemiológica, e desconhecimento inicial das ações mais efetivas frente à possibilidade de infectar toda a população com uma mortalidade importante.

As primeiras ações para a reposta a AIDS, no Estado foram planejadas por um grupo de técnicos da Secretaria de Estado da Saúde, atendendo a reinvindicações do movimento social que se via mais afetado pela epidemia. Inicialmente foi elaborado um Plano de Enfrentamento, onde a AIDS foi vista como um problema de saúde pública e o Estado precisava conhecer a epidemia, tratar as pessoas acometidas e divulgar informações para evitar novas infecções.

Com a criação do Programa Nacional de AIDS, houve um fortalecimento da resposta, trazendo novos elementos para o processo de trabalho com planejamento, monitoramento e recursos para as ações em todo o país.

A participação da sociedade civil organizada no Processo de Planejamento e implantação das ações foi e é, com certeza, um diferencial na resposta ao HIV/AIDS.

O Processo de Planejamento realizado para a resposta ao HIV/AIDS foi pautado pela gestão baseada em evidências, onde a tomada de decisão aos desafios colocados para as políticas de saúde, foram e ainda são norteados pelo conhecimento científico, produzindo uma resposta com maior agilidade e eficácia. No momento de responder a COVID 19, a decisão baseada em evidências, vem reduzir consequências danosas a vida da população.

O referencial de Planejamento Estratégico Situacional, de Carlos Matus (Matus, 1994; Artmann, 2000), potencializou o processo de planejamento, de forma que os atores participaram ativamente na formulação de metas, bem como das estratégias para o alcance das mesmas e traçando cenários possíveis mediante os recursos disponíveis.

Na formulação da política pública, os atores envolvidos diretamente com a questão da AIDS, tiveram participação importante, garantindo que os processos fossem os mais realistas possíveis e levassem em conta toda a potencialidade existente, não apenas dos serviços públicos e de seus dirigentes, mas também da sociedade civil organizada, universidades e pessoas afetadas pelo problema.

O processo de planejamento das ações locais de resposta a COVID 19 deve levar em conta esta possibilidade de envolvimento dos atores sociais. O envolvimento de representantes estratégicos da sociedade, dos setores governamentais e não governamentais, poderá produzir uma resposta mais eficaz e que vá ao encontro das expectativas da sociedade local.

A constante articulação dos três níveis de gestão do SUS, Federal, Estadual e Municipal na resposta ao HIV/AIDS possibilitou que as estratégias formuladas fossem potencializadas, cabendo a cada nível atribuições específicas, evitando a superposição de ações, inclusive na aquisição de insumos, medicamentos e formação e capacitação de pessoas. As principais estratégias foram pactuadas nas instâncias de gestão regional, estadual e nacional, a saber: CIR, CIB E CIT.

Os Conselhos de Saúde, instâncias de controle social, foram atuantes na apreciação e aprovação dos Planos formulados e, também no processo de monitoramento e avaliação da implementação deles. A apresentação dos resultados alcançados aos Conselhos de Saúde, onde são comparados com as ações e metas programadas, criou um mecanismo de controle dos resultados dos Programas de IST/AIDS (Ceneviva e Farah, 2011).

Dessa forma, a possibilidade de tornar público o planejamento e o monitoramento dos planos de municípios e estados, por meio de um sistema aberto, representou um grande avanço do ponto de vista do controle social e da transparência resultando em um grande diferencial para a resposta à epidemia de HIV/AIDS, podendo ser também para a resposta a COVID 19. 

 

A IMPORTÂNCIA DA RESPOSTA COMUNITÁRIA
A resposta brasileira ao HIV/AIDS, segundo a visão de vários gestores, profissionais de saúde, acadêmicos e ativistas, foi uma implantação bastante satisfatória do SUS. Essa premissa tem como ponto central as ações deflagradas pela gestão pública com a contribuição fundamental das várias comunidades na formulação e constituição da Política do SUS para as IST/AIDS. As comunidades formadas pelo agrupamento de universidades, agências humanitárias internacionais com sede no Brasil e as ONG, colaboraram para construção de uma política pública focada na ciência, participação cidadã e nos diretos humanos.

Das comunidades citadas, vamos focar naquela formada pelas ONG que atuam no campo do HIV/AIDS, que são reconhecidas por si mesmas e pelos demais atores governamentais e demais comunidades, como o Movimento Social de Luta Contra a AIDS (MOVAIDS). O MOVAIDS foi formado por ONG e redes de pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA), gays, lésbicas, profissionais do sexo, travestis, mulheres transexuais, hemofílicos, usuários de drogas e agentes redutores de danos, entre outros grupos, que ganharam destaques nestas últimas décadas.         

Com o crescimento do MOVAIDS, nos anos de 1980 e 1990, as vozes das várias populações que estavam sendo afetas pelo vírus do HIV, foram fortalecidas junto aos órgãos de Estado responsáveis pela formulação de uma política pública para enfrentar a maior epidemia do final do século XX, fazendo nascer assim, a resposta comunitária ao HIV/AIDS.  

No âmbito do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e de vários municípios, de grande e médio porte, foram criadas estratégias para a participação popular dos representantes do MOVAIDS com vistas a customização da resposta ao HIV/AIDS, porque desta forma, as ações de promoção, prevenção, assistência, gestão e direitos humanos seriam mais assertivas, pois foram construídas em conjunto, levando em consideração não somente aspectos técnicos de Estado, mas também, a realidade social e territorial onde seriam aplicadas.

Para citar algumas estratégias criadas durante a história da epidemia do HIV/AIDS, destacamos a Comissão Nacional de AIDS (CNAIDS) do Programa Nacional de HIV/AIDS do MS, que passou a ser Comissão Nacional de DST/AIDS e Hepatites Virais; o Fórum de Gestores, atual Fórum de Dirigentes de IST/AIDS do Programa Estadual de IST/AIDS e, as várias Comissões Municipais de IST/AIDS dos Conselhos Municipais de Saúde. Nessas três estratégias, foram e são discutidas, todas as grandes pautas relativas à política do SUS para as IST/AIDS, com a participação dos representantes da sociedade civil organizada. 

A participação comunitária na resposta ao HIV/AIDS pode servir de referência para a construção de estratégias ao enfrentamento da Covid-19, pois levou em consideração aspectos sociais, que foram trazidos pelas populações diretamente afetadas pela epidemia. Assim sendo, esses vários aspectos importantes foram fundamentais para reorientação e definição de ações programáticas para redução dos novos casos IST e HIV, a melhoria da atenção as PVHA e redução dos óbitos por AIDS.

Abrir canais de diálogo com a sociedade civil organizada e as pessoas que estão sob maior risco é fundamental para efetivar ações de prevenção e tratamento da COVID-19, pois a primeira, tem conhecimento acumulado sobre a vida como ela é no território e, a outra, do viver com uma doença crônica. Esses conhecimentos devem se juntar aos produzidos pelas comunidades acadêmicas e cientificas e das agências humanitárias internacionais para subsidiar a gestão pública na tomada de decisões que podem fazer toda diferença no enfrentamento da pandemia da COVID-19.

A epidemia do HIV/AIDS provou para todos nós, que é fundamental a união dos esforços de todas as comunidades, PVHA, populações mais vulneráveis e agentes públicos, pois todos foram imprescindíveis na construção da política do SUS para as IST/AIDS.

 

DIREITOS HUMANOS
No momento, o controle da Pandemia de COVID 19 está direcionado para as ações de prevenção e diante do desconhecido, dependendo principalmente, de mudanças no comportamento das pessoas e comunidades.

Com o aparecimento da AIDS nos anos 1980, diante da doença pouco conhecida, se iniciou a procura por características nas pessoas acometidas pela doença que pudessem explicar de alguma forma como se dava a infecção e como ela se instalava.

Na época, passaram a identificar os subgrupos populacionais que eram significativamente mais sujeitos a infecção em detrimento do restante da população, conhecidos como grupos de risco. Na pandemia que estamos vivendo hoje, essa abordagem coloca como população de risco os idosos e pessoas com algum histórico de doença pré-existente, que da mesma forma que a época do enfrentamento da epidemia da AIDS, vem se mostrando limitada e até mesmo prejudicial, acarretando preconceitos e discriminação.

As equipes de Vigilância em Saúde passam para a mídia e a opinião pública informações que reforçam a vulnerabilidade de alguns grupos. Da mesma forma, essa explicação pode acirrar os preconceitos e a discriminação já existentes na sociedade tornando mais sem sentido a preservação e a dignidade do idoso. Na eminência do colapso na estrutura dos atendimentos da saúde, nos estados e nos municípios, há propostas que chegam a aventar a saída pela escolha dos mais jovens, com status de pessoas com mais condições de trabalho, capazes de contribuir de alguma maneira para o bem público, para o desenvolvimento do país tornando ainda mais difícil a situação social e clínica das pessoas já afetadas pela idade e pelo sistema de saúde deficitário e perverso.

A Declaração dos Direitos Humanos exige que estes sejam inalienáveis, universais, interdependentes. É necessária a compreensão do direito a saúde não apenas como direito à vida, mas como bem público de responsabilidade do Estado que deve procurar minimizar os impactos negativos da doença.

O conceito de vulnerabilidade baseado nos direitos humanos, para além do conceito de grupo de risco, levou a criação de políticas públicas, e a uma resposta qualificada no caso da AIDS; permitiram a compreensão sobre os determinantes sociais, o estabelecimento de prioridades com base nos princípios de justiça, equidade e dignidade, facilitados pelos fundamentos do SUS, já em processo de implantação, cuja expertise pode vir a nos orientar.

O quadro dos direitos humanos oferece referencial para a análise desta pandemia porque pode identificar e revelar situações de vulnerabilidade que ajudam na busca de soluções.  É importante para a apreensão da dinâmica da vida cotidiana e sua organização social, pensar como a desigualdade está sendo experimentada pelos brasileiros nesse processo de infecção e morte.

O acesso à saúde é universal, o SUS garante, mas sabemos que diante do vírus quando a situação se complica, o que funciona, é o atendimento humanizado, o cuidado no leito, quase sempre exigindo tempo e paciência, e já sabemos, é demorado. Muitos chegam com o estado de saúde muito prejudicado, resultado de alimentação e condições de vida bastante debilitadas. De novo, a explicação para a contenção da pandemia focada nos idosos, se mostra falaciosa; quanto a sua evolução, deixa de fazer distinção entre ricos, pobres, jovens e crianças. Os “idosos” se isolam, as crianças deixam de ir à escola para não oferecer perigo, desse entendimento de que idosos devem permanecer em casa, como conseguir e garantir o isolamento dos demais?  Além do preconceito aumentado ao grupo de risco, outro fator parece não estar sendo considerado, que se constitui em como se dá a percepção do risco, (isso não vai acontecer comigo); a ignorância e o medo levam ao desrespeito ao isolamento, ao apelo religioso, já que falta conhecimento, educação e gestão segura. Podemos passar a responsabilizar exclusivamente pelo controle da pandemia, pela necessidade de mudanças de comportamento e, culpabilizando pelo aumento das mortes, aquele que descumpriu o isolamento recomendado?

Como lidar com o medo do contágio quando algum caso da doença ocorre em moradias que envolvem outras pessoas e o diagnóstico é vazado? São muitos os relatos de maus tratos e o comportamento agressivo enfrentado por pessoas em quarentena ou saindo dela.

Nesse momento, já se sabe que pessoas jovens e crianças estão se infectando e que as condições de moradia, saneamento básico, condições de higiene e alimentação também podem determinar a vulnerabilidade ao vírus.

A vulnerabilidade, na sua dimensão programática deve levar em conta a análise de como os governos respeitam e promovem o direito a saúde. Há que se elaborar políticas específicas, que garantam acesso e equidade, integralidade, prevenção e assistência, capacitação, participação comunitária na gestão do sistema de saúde, planejamento, monitoramento e avaliação.

Instituições de detenção, de pessoas desprovidas de liberdade, instituições da sociedade civil para PVHA, precisam ser protegidas. A pandemia da COVID-19, como em outras crises expõe as desigualdades e vulnerabilidades existentes. Afeta desproporcionalmente as pessoas já marginalizadas, vivendo em situações precárias, econômicas e de saúde. Lembrando-se das profissionais do sexo, população LGBT, mulheres e homens trans, muitas vezes esquecidas nesses momentos.

A construção da resposta à epidemia da AIDS nos conta uma história de resistência aos processos de estigmatização, preconceito e a violação de direitos, trabalho conjunto dos movimentos sociais, governo e academia.

Enfim, pensar criticamente significa considerarmos o processo vivido anteriormente como historicamente determinado, podendo suas práticas e desenvolvimento nos ajudar na direção de uma saúde coletiva, pública, mais justa e democrática. A história não se repete, mas pode ajudar a encontrar caminhos com a expertise adquirida até aqui.

 

Agradecimentos
Ao Alexandre Grangeiro, pesquisador no Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, pela colaboração na revisão do texto.

 

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