Entre o verde e o vermelho

Entre o verde e o vermelho

Entre o verde e o vermelho


“Jornalismo, independentemente de qualquer definição acadêmica, é uma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra, acrescida, no caso da televisão, de imagens. Mas uma batalha nem por isso menos importante do ponto de vista político e social, o que justifica e explica as imensas verbas canalizadas por governos, partidos, empresários e entidades diversas para o que se convencionou chamar veículos de comunicação de massa.”

O parágrafo acima abre a introdução de “O que é jornalismo”, livro número 15 da coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense. Escrito pelo jornalista Clóvis Rossi (1943-2019), referência para diversas gerações de jornalistas, o livro de bolso teve sua primeira edição em 1980 e o exemplar consultado é da 7ª edição (1986). Talvez uma edição mais recente tenha incluído nele a internet com seus portais de informação e as mídias sociais.

Conforme escreveu o premiado jornalista, a batalha pelas mentes e corações “é temperada por um mito – o mito da objetividade – que a maior parte da imprensa brasileira importou dos padrões norte-americanos”. Para Rossi, “a imprensa, de acordo com o mito da objetividade, deveria colocar-se numa posição neutra e publicar tudo o que ocorresse, deixando ao leitor a tarefa de tirar suas próprias conclusões”.

Ainda segundo o livro, a objetividade – uma outra face da imparcialidade – só seria viável numa narração de um acidente de trânsito, ou de um fato/acontecimento “que afeta apenas a um pequeno grupo de pessoas, sem maior incidência política e/ou social”, porque profissionais de imprensa, assim como quaisquer profissionais, carregam “toda uma formação cultural, todo um background pessoal, eventualmente opiniões muito firmes a respeito do próprio fato que está testemunhando, o que o leva a ver o fato de maneira distinta de outro companheiro com formação, background e opiniões diversas”.

Toda a nossa vida, todo nosso passado trabalhou para moldar o que somos no presente. Por isso, mesmo sobre um fato, as perspectivas podem ser diferentes. Até porque o ângulo de visão jamais será o mesmo. O tal “ponto de vista”. Um mesmo acidente de trânsito ainda poderá ser relatado diferentemente mesmo se dois repórteres o testemunharem no mesmo instante e estiverem lado a lado, pois o ângulo de visão não será o mesmo, já que mesmo lado a lado, cada um estará sob um ângulo de visão. E, se uma outra repórter testemunhar o fato do outro lado da rua, sua versão poderá até ser contrária à dos repórteres que a presenciaram lado a lado.

O conceito de imparcialidade, outro mito, vem sendo derrubado paulatinamente, mesmo no Brasil. Nos EUA, já é tradicional o posicionamento de veículos como o The Washington Post, o Los Angeles Times, o The New York Times, entre outros, que costumam declarar seu candidato à presidência do país. Há algumas semanas, antes de incitar o ato do Dia de Reis no Capitólio, Trump foi à TV fazer um pronunciamento, transmitido pelas emissoras de TV a partir da Casa Branca. Em determinado ponto as emissoras foram paulatinamente interrompendo a transmissão explicando que assim fizeram porque o presidente mentia.

Na história recente do Brasil, durante o processo de impeachment de Fernando Collor, a Folha de S. Paulo pediu à população que saísse vestida de preto às ruas para uma manifestação na qual o presidente pedia que se usasse amarelo. As ruas foram tomadas de preto, o que foi fundamental para a pressão popular sobre a Câmara dos Deputados para a abertura do processo de impeachment de Collor.

Se nos EUA o vermelho representa o Partido Republicano e o azul o Partido Democrata, no Brasil, o azul representa a direita e o vermelho, a esquerda. Nos anos 1930 do século XX, a cor que representava a direita no Brasil era o verde dos uniformes dos “camisas-verdes”, dos integralistas simpáticos a Hitler e a Mussolini.

Independentemente da cor que representa a direita ou a esquerda no Brasil, Saúde Pulsando geralmente se colocará à esquerda. As pautas sociais e ambientais são tradicionalmente da esquerda. Bolsa Família, que é um programa social contra a fome e a pobreza surgiu na esquerda. O passe livre para o transporte público de idosos aos 60 anos – que o prefeito de São Paulo neste ano trocou por um aumento de 46% em seu salário em plena pandemia – também é uma pauta da esquerda, que foi quem ampliou o benefício, já que a lei nacional fala em 65 anos. A preservação da floresta amazônica, a preservação do meio ambiente é uma pauta da esquerda. A direita só pensa em reduzir o Estado.

No caso da saúde e da educação, por exemplo, a Emenda Constitucional nº 95, que congelou por 20 anos o aumento de recursos para a saúde e a educação é concepção da direita. Não importa a governantes a saúde da população. Não importa a governantes que a população tenha uma boa educação. O que importa é diminuir “despesas” e aumentar a arrecadação de impostos. Um povo sem saúde é um povo sem vida. Um povo sem educação é um povo sem trabalho, um povo ignorante, que não terá clareza para escolher seus governantes.

Entre março e maio vimos a população confusa entre o que dizia o presidente – uma gripezinha – e as autoridades sanitárias – “fique em casa para que os serviços de saúde sejam preparados pra receber pessoas com covid”, dizia o demitido Luiz Henrique Mandetta. E o que aconteceu? A saúde não foi preparada a contento e o presidente recebeu grandes empresários para uma reunião que ao fim atravessou a Praça dos Três Poderes para visitar o Supremo Tribunal Federal. Foi depois desta reunião com empresários que os governadores – mesmo o de São Paulo, mais arredio ao presidente – começaram a afrouxar os protocolos de isolamento social. O SUS não foi equipado e temos o “privilégio” de viver uma segunda onda de infecções pelo SARS-CoV-2 – inclusive com suas mutações – ao mesmo tempo que Europa e Estados Unidos. A diferença é que eles já têm vacinas. Nós, ainda não.

O mesmo acontece com o Instituo de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Referência para doenças infecciosas, o IIER está na história da resposta à epidemia de aids no Brasil e deve ter seu atendimento médico para as pessoas vivendo com HIV ou com aids em seguimento descontinuado em breve. O pronto socorro, que segundo sua assessoria de imprensa “continua de portas abertas”, está priorizando pacientes com covid.

A Saúde Pulsando, a infectologista Marta Ramalho disse que a orientação da instituição é encaminhar pacientes em tratamento para outros serviços de saúde, como o CRT e a Casa da Aids, não importa. Priorizar completamente a covid, neste momento, pode ser uma redução de despesas para os cofres públicos. A transferência do seguimento HIV/aids para outros serviços será irreversível e certamente haverá uma elevação de custos adiante, se não na assistência direta num primeiro momento, mas certamente na residência. Saúde e Educação deviam ser tratadas como investimento, jamais como despesa.

Apesar da atual divergência política, o raciocínio do governo do estado de São Paulo – ainda é muito recente a formação da chapa BolsoDoria às eleições de 2018 para esquecê-la – é igual ao do presidente da República, que queria a economia funcionando. Pois bem, aí está a economia funcionando e o estado do Amazonas recrutando médicos de todo o Brasil para fazer o que não fez na primeira onda. Aí está a economia funcionando e estamos a poucas dezenas de bater a triste marca de 200 mil mortes por covid.

De importância em importância, não importa se a cor é azul ou verde, vermelho ou amarelo, preto ou branco. Entre o verde e o vermelho a cor de Saúde Pulsando será sempre o vermelho. Como será sempre da usuária e do usuário do SUS o nosso lado. Como também estaremos sempre ao lado das pessoas vivendo com HIV/aids, hepatites virais e tuberculose, ao lado de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas intersexo ou assexuadas; ao lado de pessoas usuárias de drogas ilícitas e de trabalhadores e trabalhadoras sexuais.

 

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