Fim de tarde em Itapuã. Foto: P. Giacomini, Bahia, 2019.
Por Paulo Giacomini
Antes de afundar o pé na jaca e a saúde mental na lama, eu pedi a mim mesmo que tivesse cuidado. Mas, na hora do rock o controle é o que se menos quer, o lampejo de consciência não é bem-vindo e pode prenunciar uma bad trip. E não se engane, se um dia você prenunciar a si próprix uma bad trip, pare tudo e caia fora. Neste momento ela já estará batendo à porta da sua mente.
Parece papo de maluco? Talvez seja mesmo. Mas, tem momentos na vida que a gente tem que passar por alguns obstáculos para chegar a um determinado ponto. Ou pra iniciar um novo ciclo. Que os erros sejam menos letais... Me engano, não são apenas alguns os momentos que nos sujeitamos a tropeçar nas pedras do caminho, a ralar os joelhos e esgarçar as calças, como se estivéssemos caindo de bêbadxs.
“Essa imagem não é estranha. Acho que tem uns dez anos, talvez só um pouquinho mais que que vi exatamente esta cena, no Rio de Janeiro. Foi lá que você foi buscar essa imagem, na boca do morro? O tombo com a garrafa de Jack Daniels em Porto Alegre foi bem mais divertido, apesar de você não ter se esfolado todo. E muito mais chique”, provocou a Macaquita, que apareceu assim, num repente. Como sempre.
“Os lobos estão sempre à espreita. É quando você tropeça e esgarça os joelhos das calças que eles aparecem e deixam suas peles de cordeiro e mostram os dentes babando, sedentos pelo seu sangue, mesmo que ele não seja adequado”, ensinou mais uma vez a primata. “Me serve uma dose de vodka, desliga o telejornal, põe a Maria Bethânia pra cantar e deixa eu ajudar você a escrever isso”, ordenou a Macaquita, decidida.
Ela é assim. Surge do nada, ordena e eu obedeço. Eu dei nome a ela pra que ela – ou ele- deixasse de me boicotar, como fez por toda a minha vida. “A gente engasga e chega a cuspir a terra engolida com o tombo. Mas o lobo percebe sua fragilidade e aproveita pra tirar um naco do que sobrou da sua bunda”, me interrompeu a Macaquita, como se estivesse ditando e retomando o raciocínio inicial.
“Noves fora, quase nada e era de vidro o anel”, canta Bethânia enquanto as primeiras lágrimas caem pelo rosto e Magia – o gato caçula – acompanha atento as letras surgirem na tela do notebook enquanto as digito no teclado. “Foi você quem se perdeu de mim, foi você quem se perdeu, foi você quem perdeu, você perdeu.”
Eu demorei 60 anos pra chegar aqui e, afora um ou outro objetivo alcançado, o que se mostra a mim mesmo até aqui não me agrada. Este desagrado, essa insatisfação com um balanço geral até aqui estão contaminados pela concretude do imediato. E mesmo me sentindo humilhado, passo pelos dias, pelas semanas e pelos meses com a certeza que esta situação vai me dar um pouco mais de segurança de mim.
Outro dia, alguém disse que eu fiz escolhas que a maioria das pessoas normalmente não fariam. Esta é uma frase que diz muita coisa. A primeira delas, a noção de normalidade. E aí, f*deu! Dias depois respondi que os contextos determinam as escolhas. A situação presente determina a escolha que farei pra minha vida.
Não é a primeira vez que tenho este pesadelo. Ele é tão recorrente quanto o erro que me faz voltar a ele eventualmente. O caminho, não importa porque o determinante se impõe independentemente do caminho que eu escolha. Talvez, porque seja patológico.
Eu comecei a me sentir abandonado em algum momento recente. Primeiro, me acusei de ter me afastado de tudo e de todos. Amigos, família. Só dela eu continuava próximo e cada vez mais. Eu avisei. Eu me avisei e pedi cuidado. Mas não adiantou. Por isso a voz dele me dizendo “poxa, Paulo! De novo? Você não vai aprender nunca?” começou a ecoar da minha puberdade até o presente. Só que desta vez era eu quem me dizia, como se eu mesmo já não aguentasse mais me dizer aquilo.
Se eu tivesse me apegado ao meu autoflagelador, talvez... Não, já era tarde. Eu já estava me sentindo abandonado. Eu via a casa imunda, eu via que minha cabeça não funcionava direito já havia um tempo – por diversas vezes tive de voltar onde estava porque tinha esquecido o que fui fazer na cozinha, por exemplo. Uma vez, voltei à cadeira em que estava por três vezes até lembrar o que fui fazer na cozinha.
Até que a comadre perguntou como eu estava. “Estou péssimo”, respondi. “O que tu tá sentindo?”, perguntou ela. “Abandono” – eu latiria, se estivesse à frente dela. Os amigos estavam me ajudando. Um deles me cadastrou para receber uma cesta básica na ONG que gerencia. Outra, transferiu o dinheiro do gás. E outros amigos também transferiram dinheiro que comprei areia pro banheiro dos meus filhos, comida, fiz a feira, abasteci os cigarros, comprei a vodka que estava num preço ótimo. Mas eu só me sentia abandonado
Até a erva eu comprei – o que me tranquilizou bastante –, disse não à pálida amante química e, mesmo assim, me sentia e me punha no lugar de alguém abandonado. Vítima, eu mesmo diria a qualquer outra pessoa. Ainda bem que esse lugar de vítima não me é confortável por muito tempo. Minha autocrítica e meu autoflagelo, minha falta de autoconfiança, pelo menos têm isso de bom: eu nunca estou certo de nada. Menos de 12 horas depois eu consegui olhar pra dentro e me perguntei:
“Como é que uma pessoa que se abandona pode se sentir abandonada?” Isso também ecoou na cabeça, mas agora, do presente para os vários momentos do passado em que me pus e de novo e novamente neste mesmo pesadelo. Eu acho que já estou acordando, mas só acho.
Uma viagem ruim – a tal da bad trip – que eu mesmo me coloquei antes mesmo de a minha mãe ficar doente e morrer. E quando ela morreu eu simplesmente enfiei o pé na jaca e a saúde mental na lama.
Talvez eu tenha sido abandonado aqui ou ali. Talvez eu jamais tivesse sentido qualquer tipo de abandono se eu mesmo não me tivesse abandonado. O que eu talvez tivesse de ter respondido lá atrás, quando ele me perguntava se eu não ia aprender nunca era quando ele estaria à disposição pra me ensinar e de novo, se eu precisasse.
“Oi?”, perguntou a Macaquita, despertando do cochilo que deu depois do terceiro gole de vodka. “Oi, nada, sua displicente! Você não disse que ia me ajudar a escrever?”, retruquei inquirindo-a. Mas ela já estava abandonada em seu sono novamente.
“Diário da Macaquita”, por Paulo Giacomini
Jornalista, começou criando o jornal da empresa em que trabalhava. Da faculdade foi direto pra Coluna Gay da Revista da Folha, da Folha de S.Paulo, onde colaborou com Poder, Esporte, Turismo e Ilustrada. Trabalhou na G Magazine, fez cobertura de carnaval pra Coluna do Gugu e ajudou a criar OFuxico. No movimento de aids, escreveu, editou, fotografou, produziu e deu forma a diversas publicações. Fez especialização e mestrado em Informação e Comunicação em Saúde no Icict/Fiocruz e foi Secretário de Informação e Comunicação da RNP+BRASIL. Vive com HIV/AIDS desde 1984. É diretor de Saúde Pulsando.
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