Passarinho na parabólica. Foto: arquivo pessoal

Por Paulo Giacomini

Ontem escutei uma interpretação do Gilberto Gil para Ovelha Negra que eu simplesmente adoro. A baladinha introspectiva e adolescente da Rita Lee está, originalmente, no Fruto Proibido, primeiro trabalho da roqueira para a Som Livre, lançado em 1975.

Eu tinha 13 anos quando ouvi Esse tal de rock’n’roll pela primeira vez, numa chamada na TV. Rita Lee foi minha primeira referência musical, as anteriores foram influências dos meus pais. Acho que foi naquela ou na semana seguinte que comprei o “disco”. É nele que estão também os sucessos Ovelha Negra, Agora só falta você e Dançar pra não dançar, Luz del Fuego e Cartão postal.

Mas, Gil interpreta Ovelha Negra em Refestança, trabalho incrível que ele e Rita fizeram ainda nos anos 1970, cujo show assisti nas arquibancadas do ginásio da Portuguesa, no Canindé, em cuja gravação ao vivo Lucinha Turnbull faz um primoroso backing vocal. Ela foi parceira de Rita nas Cilibrinas do Éden, entre Mutantes e Tutti Frutti, antes do antológico Atrás do porto tem uma cidade.

Toda vez que ouço Ovelha Negra – seja a gravação original, de 1975, seja a de Gil em Refestança, ou mesmo a do Acústico MTV, alguma lembrança, emoção, saudade ou arrependimento bate. Não necessariamente nesta ordem. A que bateu desta vez foi um déjà vue. Nele, pergunto aonde estava em algum momento, período, ano, em alguma década ou geração...

Pra você entender, eu me formei em 1995, mas só fui olhar pra um aperfeiçoamento, uma especialização, dez anos depois, para ingressar no curso de especialização em Comunicação & Saúde 12 anos depois. Eu me pergunto o que fiz neste tempo, ainda que minha orientadora tenha dito que eu já era um especialista em comunicação em saúde, mesmo sem um diploma que o certificasse.

Certamente fiz muitas coisas, produzi. Entrei na faculdade em 1992; no segundo ano já estagiava – era editor de Comportamento – no jornal da faculdade e editava o jornal que propus à empresa em que trabalhei até minha demissão, no dia que meu primeiro sobrinho nasceu, em abril de 1994.

De dezembro de 1995, quando me graduei em jornalismo, a 2007, quando entrei na pós-graduação do Icict/Fiocruz, eu tinha um pôster aprovado na conferência internacional de aids de Vancouver – em que foi apresentada a terapia tríplice, o “coquetel” de medicamentos que revolucionou a história da aids em todo o mundo –, havia colaborado com diversas editorias – Esportes e Política inclusas, na Folha de S. Paulo –, impulsionado a criação da G Magazine em substituição à Bananaloca, ajudado a formatar OFuxico, editado o jornal Aids e Ativismo, e revisado e formatado a publicação do Relatório do Seminário de Redução de Danos realizado pelo “É de Lei”, entre outras.

Mas, nessas horas, o coração sempre bate perguntando qual era o fracasso da vez, a paixão não correspondida. Respondo que me protegia de uma rejeição, de outra desilusão. E, com essas sensações me travo. É impossível pra mim escrever para traduzir quaisquer sentimentos. E ponto. O afeto é algo sensível na minha vida.

Neste final de semana, no início da coluna do Jean Carlos Dantas me identifiquei com sua personagem. No meio da revisão tive que fazer um exercício de afastamento, de ‘distanciamento’ do personagem, como propõe Brecht, pra que a mensagem de seu autor pudesse fazer sentido pra mim e pras suas e seus leitores. O ‘distanciamento’ brechtiano propõe que ator ou a atriz possam não apenas ‘viver’, ou incorporar o personagem, mas dar-lhe uma interpretação crítica, dar-lhe intenção. Enviei o artigo à aprovação de seu autor com um recado: sempre com afeto.

Quando “casei” com minha mãe estava claro pra mim que o afeto teria de ser dissociado do desejo e da intimidade sexual de duas pessoas em um relacionamento. Meu afeto, então, foi direcionado a amigues sinceres e às pessoas vivendo com HIV e aids, as tão resistentes PVHA, e não PVHIV. A minha mãe sempre dedicou muito afeto a mim. Talvez ela tenha exagerado um pouco, inclusive por ter recebido tanto desafeto na vida... Ela também dirigiu todo seu desafeto ao perceber que não tinha mais como atingir a meu pai. Mas, essa é uma outra história – ou estória – cujo modelo definiu o modo como estabeleço e desenvolvo as relações de afeto na minha vida.

Voltando, foram as PVHA o motivo das minhas persistência e resistência ao longo dos mais de 25 anos que estive formalmente no movimento social de luta contra a aids no Brasil. Ainda estou, mas é diferente. Eu já disse isso muitas vezes: eu sei qual porta chutar. Mas, grande parte das pessoas que vivem com HIV e que possam vir a adoecer de aids – por isso pessoas vivendo com HIV e AIDS, como faz questão o movimento social de luta contra a aids no Brasil – não sabem que portas devem chutar; a maioria delas nem sequer sabe que essas portas existem.

O ‘casamento’ com minha mãe durou 31 anos. Ela não aceitava muito bem minha soropositividade pública, nem minha homossexualidade; sua reação a essa, quando teve certeza ao ler um diário meu foi jogá-lo ao mar, pedir a Nossa Senhora que me cobrisse com seu manto sagrado e que fizesse “isso” passar logo. Enfim, já faz 18 meses que ela se foi pra sempre. Nestes meses, confesso, apertei a tecla F. Aí chegou a pandemia e mudou o mundo. Com ela também chegaram o distanciamento social e corporal e uma maior proximidade conosco mesmo.

Alguns meses atrás pedi um help à minha psicoterapeuta, o que foi muito bom. Agora, pedi novamente, mas não deu tempo de conter o surto e cheguei ao ponto de me desequilibrar completamente. Não que eu tenha tido algum tipo de equilíbrio em toda a minha vida, mas mais, muito mais. Não entrei em colapso porque vivo relembrando o dia em que ela me disse que eu tinha ferramentas internas suficientes para sair de qualquer encruzilhada. Mas, a piração rouba o foco levando-o para o âmbito do afeto. O afeto é e sempre foi uma questão delicada na minha vida.

Mas, 957 palavras depois, envelhecer sem ter um lugar estabelecido dentro de si para o afeto, é complicado; ter em perspectiva menos de 18 meses para alcançar a velhice, novamente confesso, chega a ser insuportável. Principalmente numa sociedade que tem no culto ao corpo e à virilidade, ao novo e à juventude seu sentido, sua organização econômica e inserção social.

Então, entre reflexões a respeito da existência, da sobrevivência, da resiliência e da resistência meio que se impõe uma oportunidade de viver – sem distanciamento – intensamente uma experiência revitalizante, revigorante e rejuvenescedora, uma experiência de vida.

Nova e cheia de virilidade, inexoravelmente a vida nos surpreende e nos arrebata, inevitavelmente sem deixar-nos opção. Até que esta se naturalize e torne-se, tão somente, sua legítima escolha.

Algumas vezes sinto como se ainda fosse aquele adolescente de 13 anos ouvindo Ovelha Negra no máximo. Talvez eu ainda seja ele e por isso envelhecer parece tão duro.

“Diário da Macaquita”, por Paulo Giacomini
Jornalista, começou criando o jornal da empresa em que trabalhava. Da faculdade foi direto pra Coluna Gay da Revista da Folha, da Folha de S.Paulo, onde colaborou com Poder, Esporte, Turismo e Ilustrada. Trabalhou na G Magazine, fez cobertura de carnaval pra Coluna do Gugu e ajudou a criar OFuxico. No movimento de aids, escreveu, editou, fotografou, produziu e deu forma a diversas publicações. Fez especialização e mestrado em Informação e Comunicação em Saúde no Icict/Fiocruz e foi Secretário de Informação e Comunicação da RNP+BRASIL. Vive com HIV/AIDS desde 1984. É diretor de Saúde Pulsando.


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