Fred espera o tio (Foto: Fernanda Fraiz)

O compromisso de um diário é para o cronista, o colunista. Zé Simão reuniu diversas de suas colunas diárias publicadas na Folha de S.Paulo num livro. Para quem não sabe, o macaco Simão é o alterego do jornalista que escreve sobre a piada pronta que é o Brasil de qualquer governo. Para ele, quem fica parado é poste. E vamos em frente.

Atualmente, o epidemiologista Draurio Barreira tem circulado a um pequeno grupo de amigos seu Diário da Pandemia, crônica diária sobre a pandemia da Covid-19 no Brasil. A quem não tem o privilégio, a companheira Dulce Ferraz tem compartilhado no Facebook.

O diário do médico brasileiro é escrito de seu home-office em algum lugar da França, muito perto de Genebra, onde ele trabalha. Considero privilegiada e angustiante a visão do Brasil que tem uma pessoa brasileira que o enxerga de fora. Ainda que eu tenha me decepcionado no dia seguinte a certo dia marcante da epidemia para o Brasil – fiquei ansioso com o que Draurio nos brindaria no outro dia –, seu diário é maravilhoso e desolador – e eu poderia relacionar aqui outros adjetivos oponentes –, mas é, sobretudo, realista.

O preâmbulo análogo é pra dizer que, diferentemente dos cronistas – o jornalista e o epidemiologista – este Diário da Macaquita está mais para o de uma adolescente apaixonada que suspira pelo boy com quem sonha perder o hímen do que com o do piadista da classe média que fecha o periódico com o autoescracho tupiniquim ou o do médico-antropólogo cujo interesse talvez tenha sido, inicialmente, apenas registrar a emergência daquilo que num primeiro momento parou o mundo todo para depois muda-lo para sempre.

Nos âmbitos social e epidemiológico, uma mudança mais profunda do que as provocadas pela “peste negra” e pela “gripe espanhola” juntas. Nos âmbitos político e econômico, mais... nebulosos..., mais... definitivos..., mais dilacerantes que as quebras das bolsas de Nova York em 1929 e 2008. Igualmente juntos.

A tragédia do genocídio pandêmico em curso no Brasil é dilacerante. Tenho repetido “que economia teremos com mortos?” algumas vezes. Sinto como se a pergunta não fizesse sentido algum.

Na semana passada um adolescente preto, pobre e periférico teve sua vida estúpida e barbaramente ceifada por uma ação policial no Brasil. Não se sabe se a tragédia tenha sido provocada por um policial branco.

Durante esta semana, outro negro teve a vida interrompida pela estúpida e bárbara ação de um policial branco nos Estados Unidos.

Nas primeiras manifestações, um cordão humano branco se formou entre a revolta preta e a polícia. E então, na madrugada do domingo, no meio da pandemia, americanos do norte saem às ruas de costa a costa do país enfrentando a polícia pra dizer que a repetição dos fatos passou dos limites.

Ao sul do Equador onde não existe pecado, já acostumados ao genocídio pandêmico, semanalmente brasileiras e brasileiros assistem na gigante passividade adormecida, primeiro às “saidinhas” do presidente eleito e empossado democraticamente. Depois, ao escancarado apoio e incentivo presidenciais às manifestações contra a democracia: das metafóricas hemorroidas ao baixo calão dos palavrões, verbalizados por quem não os podia pronunciar; ao contrário do recuo, a porra que acaba para a segurança da mídia do establisment, o anúncio da retirada da cobertura jornalística do “maior jornal do País” às paradinhas do presidente ao chegar ao Planalto; o golpe anunciado que não tem data e a acelerada demonstração de poder na cavalgada presidencial.

“E você vai investir na alternativa jornalística, na ampliação do grito das vozes caladas, na vocalização da vulnerabilidade escancarada em meio a tudo isso...”, sugere uma vozinha interna e questionadora. “É a função social do jornalismo. É o prazer da serotonina. É o caminho que está sendo traçado, a função política para além do desenho técnico. É mais uma contribuição. É o karma transformado em dharma, o desejo e a homenagem à minha mãe”, respondo à voz da realidade. Nunca, em todos os meus 58 anos de vida trabalhei tanto. Já passei por diversas necessidades, mas a que tem se avizinhado é amedrontadora e desafiante. Nunca, nestes 58 anos fui tão feliz e tive tamanha resiliência como agora.

Ainda na madrugada, a notícia que estaria nos principais jornais do País manifesto de juristas por um basta institucional me deixou dormir até acordar.

Depois do café e antes da feira irrompe a notícia da cavalgada e de que torcidas de Corinthians e Palmeiras – maiores rivais do futebol paulista – estavam, em meio a pandemia, sendo isolados pela polícia de uma manifestação contra as instituições democráticas no Brasil.

A flor de maio desabrochou no último dia do mês e de repente faz sentido o Lulu cantar que “a velha bandeira da vida acenderá e todo farol iluminará uma ponta de esperança”.

No meio da tarde, o Frederico Freud pediu pro pai por a coleira que quase não coube no pescoço pra esperar o tio Jorge que ia trazer um livro pra entregar pra Cristina. Não deu pro tio aparecer mas o outro pai do Fred veio e reativou a serotonina do pai. Foi embora na segunda das cinco vodkas que o pai tomou só pra relaxar.

É, a macaquita acordou com a macaca.

Vai dormir, macaquita!

“Diário da Macaquita”, por Paulo Giacomini
Jornalista, começou criando o jornal da empresa em que trabalhava. Da faculdade foi direto pra Coluna Gay da Revista da Folha, da Folha de S.Paulo, onde colaborou com Poder, Esporte, Turismo e Ilustrada. Trabalhou na G Magazine, fez cobertura de carnaval pra Coluna do Gugu e ajudou a criar OFuxico. No movimento de aids, escreveu, editou, fotografou, produziu e deu forma a diversas publicações. Fez especialização e mestrado em Informação e Comunicação em Saúde no Icict/Fiocruz e foi Secretário de Informação e Comunicação da RNP+BRASIL. Vive com HIV/AIDS desde 1984. É diretor de Saúde Pulsando.


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